Cantigas

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Incursões Antropológicas


Nas minhas incursões antropológicas, apresentei este texto como base de uma Comunicação no Grupo O Som do Lugar e o Mundo, em 2007.

Na perspectiva de divulgar, mais Drops Literários para vocês.


Beijos e que os ventos de Oyá refresquem as mentes sensíveis deste Brasil!



De Wolverine a Oxóssi –
O pop e os arquétipos de humano


Não é mais novidade o que a cultura pop tem feito a partir de diversos arquétipos universais. São super-heróis, bandidos, mulheres excepcionais, homens desfigurados que passeiam através da música, dos quadrinhos, do cinema, da TV, expressando tanto o horror quanto o fascínio que o imponderável exerce sobre nós.
As bruxas medievais davam calafrios somente em pensar nas poções e nos feitiços por elas realizados. Os alienígenas são desenhados nos filmes a tal ponto, que projetamos neles a crueldade tipicamente humana (até onde se sabe, somente humana), os imputando um desejo de invasão do planeta, como se fossemos uma espécie de Iraque destes seres de outra esfera planetária. Aqui na Terra mesmo, os arquétipos humanos sobressaem nas ficções como resultado da apreensão mítico-religiosa ou da criatividade de escritores, em múltiplos meios de arte, que criam seres em que estão contidos elementos de representações coletivas sobre fenômenos manifestos e capturados pela consciência (ou seria inconsciência?) e fixados como símbolos de tensão e/ou explicação do mundo.
Werewolf é o termo em inglês para designar lobisomem, esta criatura que se constitui num ser meio homem meio lobo (e que não é nem uma coisa nem outra) aterrorizando desde a Idade Média os sonhos de muitas pessoas. O werewolf é uma criatura advinda do universo dos híbridos, cuja hibridização, por si só, já nos leva ao medo, pela falta de pureza, de definição clara do seu pertencimento. O temor que o lobisomem causa é similar aquele que nos dá o “marginal”. No limite entre o aceitável de humanidade e “barbárie” (que me perdoem germânicos, eslavos e outros descendentes dos bárbaros da Antigüidade) o werewolf parece o “marginal”, no sentido de estar entre o humano e o animal, como nós muitas vezes pensamos estes indivíduos que nos deixam apreensivos por causa de sua capacidade de nos surpreender e, mesmo, nos agredir. Se o marginal não é humano? Claro que é. A comparação aqui se dá para perceber a semelhança de sensações. “Quem com porcos se mistura, farelo come”. Esta expressão designa o conselho das famílias para que o indivíduo não se envolva com ninguém que pareça transitar entre limites de civilidade e de não- civilidade. Os híbridos aí (mesmo não sendo lobisomens) alertam para arquétipos de comportamento não aceitáveis socialmente. São representantes de aspectos da cultura que deveriam ser contidos, numa representação generalizada de mundo. O “marginal” (mesmo o apenas usuário de maconha, ou rapaz meio afeminado que adentra casa “de família”) não serve como exemplo razoável de ideal de civilização, tal como o lobisomem; um ser entre perigoso e sexualmente excitante, na sua lasciva busca por carne e sangue.
Wolverine (wolf continua sendo a partícula característica deste nome) é o personagem da Marvel Comics, eternizado na obra X-Men, criação de Stan Lee. O mutante (híbrido também) é aquele que, com um fator de cura ilimitado, pode ser ferido e, mesmo como dor, em pouco tempo volta à integridade, desapontando seus inimigos. Não fosse apenas essa característica, de suas mãos, saem garras de um metal fictício chamado adamantium, que podem fazer estragos quando o ser em questão se sente ameaçado. Wolverine é uma espécie de animal domesticado pela convivência com os X-Men. Sua origem remonta experiências do governo norte-americano com um projeto chamado Arma X. Wolverine era a própria arma. Jogado entre lobos e perigos no frio e em condições adversas, o personagem foi induzido a um estado animalesco para desenvolver suas qualidades inatas de instinto e sede de matar. Ao voltar para a civilização, mantém latentes estas potencialidades, e tal e qual o Werewolf, se transforma em expressão de raiva quando desafiado. Sua oscilação também se dá entre a natureza (instintiva e com regras livres dos padrões humanos) e a cultura, em que assume o perfil de um misantropo avesso ao comportamento social aceitável. Entre Wolverine e o Werewolf, não apenas o prefixo lobo (wolf) é o ponto em comum.
Ogum e Oxóssi são duas divindades do panteão iorubano, cultuados no Brasil, no Candomblé e na Umbanda. São deuses que representam a passagem do homem histórico da animalidade para a humanidade. Ogum é o desbravador, antigo deus da caça e posteriormente o construtor dos impérios do metal. Nos mitos mais correntes, é o sanguinário guerreiro, que corta com sua espada as cabeças daqueles que o desagradam. Uma espécie de cruzado cristão medieval sem o interesse de catequização ou de reconquista de Jerusalém. A sua catequese é a conquista em si. Ogum é o rei da/na guerra. Aquele que abre os caminhos, estabelecendo, ao quebrá-los, os limites. Ogum determina o antes e o depois do Homem a partir de suas armas de metal.
Oxóssi é irmão de Ogum. Aprende com ele as artes da caça e se especializa nesta atividade. Enquanto Ogum constrói estradas, ligando limites, Oxóssi embrenha-se na mata, providenciando alimentos. É a animalidade no seu sentido profundo. Mas Oxóssi (também chamado de Odé, o caçador), é um híbrido, na medida em que se transforma em rei, ao conquistar a região de Ketu, atingindo a supremacia. É animal caçador, na mata e homem soberano, na civilização. Oxóssi é aquele que imita o som dos animais para melhor se aproximar e caçá-los, e ao mesmo tempo, é a personificação da realeza sutil e bela. Enquanto Ogum não se apodera (no sentido de saborear o poder), pois está sempre em busca de novas estradas, Oxóssi está na mata, como animal que também é e está na civilização, como rei que se tornou.
Ogum e Oxóssi são duas animalidades transmorfas em civilização. Werewolf e Wolverine são duas animalidades que se integram e, ao mesmo tempo, se afastam do mundo civilizado. Wolverine tem a faculdade de sentir os cheiros de maneira mais aguçada que nós, humanos. Oxóssi aprende o som e o cheiro dos animais para torná-los presa e posterior alimentação. Ogum e o Werewolf são temidos por seus acessos de ira. Ogum quer conquistar pela guerra. O Werewolf mata por instinto. Oxóssi vive marginalmente à civilização, na mata, e retorna ao mundo da sociedade, trazendo o que o mundo não civilizado fornece – alimento. Tanto Ogum, quanto Wolverine são tipicamente estranhos aos olhos do comportamento sutil. Nenhum dos dois se enquadra na idéia de educação como uma economia de pulsões. Com isto, pode-se afirmar que não se curvam à civilização ocidentalmente erigida ao longo da história. Oxóssi e o Werewolf fogem de um convívio com o humano no momento em que se embrenham nas matas da sua necessidade de solidão. Oxóssi caça solitariamente, e o Werewolf precisa estar só para destilar suas dores inerentes à condição de homem-animal que não consegue fugir ao desejo incontrolável por sangue.
A cultura pop engloba tanto as mitologias religiosas, quanto os elementos coletivos cotidianos. As empresas que fazem maravilhas tecnológicas para desenhar universos mágicos nos quadrinhos e nos filmes, desejam, de fato, que reconheçamos nossa admiração por imagens presentes nos sonhos e no inconsciente. Figuras como Salvador Dali e Pablo Picasso, de certa forma, entenderam o inconsciente e o fantástico na sua arte, que não por acaso, também pode ser enquadrada no rol de imagens utilizadas pelo pop. Para não escapar-me da deixa, e colocar um pouco de mulher nesta história, a recente letra de Harlei Eduardo
[1] – Ororo – é um poema esclarecedor dos efeitos do pop sobre os arquétipos:

Ororo, dona dos raios
Oyá
Mutante transliterada
Ororo
Oyá no espelho, Iaô
Na sala escura um reflexo
Anúncio na tela clara
Na Tempestade dos arquétipos
Iansã surgiu translúcida
Ororo
Oyá tomou sua Iaô.

Ororo é o nome civil de Tempestade, a também personagem dos X-Men, companheira de Wolverine. Sua característica principal é o dom de manejar os elementos do clima, numa transformação de humanidade para natureza, se aproximando do arquétipo do orixá Oyá-Iansã, senhora dos ventos e da cólera expressa nos raios e trovões.
Stan Lee, ao atualizar aspectos do Werewolf na figura de um personagem como Wolverine, está também possibilitando que reconheçamos estes e também Ogum e Oxóssi como arquétipos de híbrido e por que não até certo ponto marginal (de margem, a margear, na borda) nestas personas. Werewolf, Wolverine, Ogum e Oxóssi são todos homens (humanos e masculinos) e animais. Pertencem ao reino do trânsito entre limites. O pop é capaz de colocar eles todos na mesma prateleira comercial, e podemos falar hoje de lobisomem sem um terror que ultrapasse os limites do medo temporário ao assistir uma cena no cinema. O pop possibilita que Wolverine não seja temido, nem quando faz sair suas garras, pois pertence aos limites do mundo dos quadrinhos e do cinema. Ele não sai da tela para descarregar sua raiva em nós. Deste modo, os arquétipos como modelos de compreensão do humano têm na cultura pop uma contribuição fundamental para que nos vejamos como eternos híbridos. Estamos sempre em limites de algum tipo. Estabelecidos aqui, fora dos padrões lá. Mesmo que não cheguemos às raias da animalidade, humanos são testados sempre na sua capacidade de sobrevivência, como Wolverine ou Oxóssi, somente para citar nossos personagens de hoje.


[1] Harlei Eduardo é violonista, cantor e diretor musical do grupo bando de uns.


Até mais!!!!!!!!

Carlos Barros


06 de julho de 2008.

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