Cantigas

sexta-feira, 25 de julho de 2008

De Confecções e Feituras (Parte I)


Revendo junto à produtora Dil Guimarães algumas imagens de shows que realizei, percebi que a feitura de uma obra é um artesanato da mente, do corpo e da alma.


Realizei dois shows que marcaram em muito o meu caminho como artista profissional da música.


Em 2006, homenageando os sessenta anos de Maria Bethânia, fui convidado a cantar em Santo Amaro da Purificação no belo Teatro Dona Canô e apresentei o recital

Atakã - Amiga dos Ventos.


Em 2008, como parte integrante da divulgação do espetáculo dança O Brasileiro Gil, no Teatro Castro Alves, fiz o show Gilberto Gil - A Dança de Shiva.


Dois momentos ímpares para mim e para a estreita relação que meu trabalho tem com estes dois músicos (não posso esquecer dos outros dois baianos maiores).


Bethânia e Gil. Certa vez, eles disseram sobre a confluência de suas posturas no palco. Chegaram a brincar com a tonalidade avermelhada de suas presenças cênicas, em contraste complementar ao certo ar cool de Caetano e Gal.


E eu tive a honra de homenageá-los em momentos distintos.


Em Atakã, a proposta era entrar no universo de Bethânia, pedindo licença aos ícones que ela gravou. De As Ayabás (Caetano e Gil), passando por Rosa dos Ventos (Chico Buarque), o show transitou entre a beleza das melodias compostas para a baiana e a força das letras também inscritas no mundo desta artista. E o mundo de Bethânia contém, entre outras coisas, amor, tenacidade, natureza, sonhos e afirmação.


Na noite de 16 de junho de 2006 (com a presença de parte do clã Velloso) Carlos Barros, Harlei Eduardo, André Buziga e José Maia - banda que fez soar as notas de Bethânia por Carlos - puderam transcorrer. E transcorremos como um rio que assenta-se sobre o terreno acidentado e dotado de magnitude que é o perfil e o repertório de Bethânia.


Batatinha esteve presente no seu Bolero de uma bailarina que precisa do palco para amar. Dona Ivone Lara pôde ser evocada no Sonho Meu, cuja memória ainda é tão viva na gravação dasbaianas de Santo Amaro e da Barra Avenida - Bethânia e Gal no registro mais que definitivo. Caetano brilhou em Maria Bethânia, Nossos Momentos, Drama e Reconvexo. Chico veio em Terezinha e a já citada Rosa dos Ventos, e aí, cantar este carioca já era suficiente para o artista no palco não explodir em uma energia que só Bethânia suporta plenamente.


Capiba, ao compôr o tema Maria Betânia, talvez nem imaginasse que iria ser o responsável por nomear tamanha figura artística a nascer.

A canção de Capiba encerrou a noite, com ares de que ali não terminava nem a artista Bethânia, nem o desejo de Carlos Barros de continuar o show para sempre, na sua ânsia de - antropofagicatropicalisticamente - continuar se alimentando do favo de mel desta rainha-abelha-mor da MPB.


O show Atakã - Amiga dos Ventos veio, de fato, como este pano que dá nome ao show: abraçou Bethânia, envolveu-a como que a proteger, mas verdadeiramente, buscou despí-la numa medida em, que sua nudez fosse tal e qual aquelas da renascença, cuja pele parece estar envolta numa névoa esbranquiçada que mais aguça do que esconde o que há de essencial.


O atakã branco que deu nome ao show buscou enrolar os seios da obra de Bethânia querendo estar ali, perto do coração de sua trajetória, na temperatura e na audição ideal da pulsação de seu sangue, que continua tão vital para a música deste país.


O pano foi amarrado para que a entidade pudesse dançar na minha voz, nos meus gestos, nos meus pés levemente acima do palco, como a parecer-se com ela, a Bethânia que foi centro da homenagem. Não sei se me deixei tomar por inteiro.


Somente sei que foi bom ter sido veste para tamanha energia e ainda asim poder ter aparecido lá no meio daquela bruma iluminada que é a trajetória e a simples existência de Maria.


Por aqui, chego ao fim deste momento.



Para falar de Gil e da sua/minha Dança de Shiva, somente no próximo capítulo destas confecções de Barros.



Até a próxima.



25 de julho de 2008.


domingo, 20 de julho de 2008

Casa de Amigo


Simone e Zélia me seduziram!


Vejam aí!



Casa de Amigo, Espelhos de Almas


Alguém cantando longe e ao mesmo tempo tão perto de mim.


Duas vozes juntas e aproximando Brasis. Setentas e noventas e dias atuais falaram pelas mulheres ali presentes. O feminino - sem questão - a se colocar!


Zélia e Simone vieram.


Este encontro, celebrado desde o início pela minha sensibilidade, presenteou a sexta-feira baiana fria, meio chuvosa e que foi entregue à beleza pelo show Amigo é casa, das duas intérpretes.


De repertório, o show somente careceu de maior atenção por parte do público, em menor número, mas não menos disperso para algumas peças que atestavam o caráter sofisticado da empreitada.


Simone e Zélia são duas das representantes do feminino na música brasileira.

Uma, com a experiência de quem viveu períodos tão díspares da história da música deste país. Outra, que chegou para mostrar originalidade interpretativa e um gosto pela subversão estética encoberta/desvelada na escolha/composição de canções de uma inteligência tamanha que provoca gozos.


Precisamos sim de Itamar Assunção e Arnaldo Antunes na voz de Zélia.

Certamente, a alegria do pecado às vezes (muitas vezes!!!!!) toma conta de mim. E com Zélia chamando, não há como recusar.


Precisamos de Roberto, Erasmo, Chico Buarque, e todos os companheiros de estrada da baiana da gema, do sotaque, do corpo esculturalmente desenhado em vestes brancas, da cor da luz que sua presença emana no palco.

Simone trouxe notícias do mundo de lá, de onde ela habita. Lugar de X de questões, de G de pontos brilhantes de prazeres que ela conhece e nos oferece em forma de melodias. A sua transpiração chega a tocar nossa pele, sua voz ecoa dentro da alma, aliás, que ela canta há muito tempo.


Amaram, juntas, amores urgentes e convidaram para um almoço musical estupendo, sempre voltando com o menu de Chico Buarque.


Zélia, fluminense celebrando a Bahia e a baiana ao seu lado, nos aponta a grande intérprete pop e contemporânea que, felizmente, não se foi junto com a maior cantora das últimas décadas - Cássia Eller. Para os que acharem um exagero, me acompanha na medida a fala da própria Zélia, que abre a homenagem junto à Simone. O amor me pegou e elas precisam pegarem-se à criatura Cássia, que veio em forma de inspiração para a letra não menos inpirada de Caetano.


Simone nos beijou.

Zélia nos abraçou.

Ambas se uniram, e este dado não pode ser desconsiderado jamais.


A mulher ali naquela ótica dessas moças, meninas, jovens senhoras da música no Brasil, é livre, solta, lépida e eólica. A mulher brasileira ali naquele espetáculo abre as cortinas para dizer mais, e melhor, que qualquer bandeira hasteada nas passarelas urbanas enfeitadas com panos coloridos em dia de parada. A mulher ali se vê plena, em conformidade e transgressão.


Simone e Zélia me fizeram apaixonar.

Amigo, agora, é coisa pra se guardar em casa.

Como se diz na Bahia; "quem casa, quer casa".

Que este casamento musical possa sempre ser lembrado!


E, se Erasmo e Narinha já disseram há muito tempo, certamente, depois desta amostra,

dizer que a mulher é sexo frágil, vai ser mais que mentira absurda.


Vai ser burrice.

Carlos Barros, 20 de julho de 2008.



Grande beijo a todos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


Até mais!


Carlos Barros.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Chuvas em todos os céus que me habitam!



Em 2003, a cantora Maria Rita surgiu para o mundo e evocou a felicidade perdida ao cantar Marcelo Camelo, com Santa Chuva.





Em 2004, a minha chuva pessoal caiu por cima da cabeça, trazendo a saudade do amor que, embora aqui, não mais estava comigo.


Se foi, estando ao lado, contíguo, no quarto próximo à sala de estar...


E estar, naquele momento não me foi muito agradável.





Com a Santa Chuva de Camelo e Maria Rita, me molhei com a frieza dos versos objetivos.


Me aqueci com a voz/força de Maria (mais uma da minha tríade de Marias) e somente poderia ter chorado.





Ainda hoje, quando ouço esta canção, me vem uma espécie de prazer do passado, que sempre vem da necessidade de sofrer com as dores que nos deixaram mal. Como se quiséssemos extrair da dor alguma coisa benéfica - ecos cristãos ou genética inevitável de ser humano?





Quando gravei esta canção num ensaio em agosto de 2006, não conseguia ouvir, pois parecia que naquele momento a chuva passava a cair dentro da minha cebeça, e não poderia haver cobertor para o frio que sentiria toda vez que caíssem as águas daquela chuva.





Esta chuva não pára de cair, mesmo que eu precise não lembrar do motivo da reunião de nuvens de chumbo nos meus céus.





Santa Chuva


Marcelo Camelo


Vai chover, de novo
Deu na tv
que o povo já se cansou
de tanto o céu desabar
E pede a um santo daqui
que reza a ajuda de Deus
mas nada pode fazer se a chuva quer é trazer você pra mim
Vem cá
que tá me dando uma vontade de chorar
Não faz assim, não vá pra lá
meu coração vai se entregar à tempestade
Quem é você pra me chamar aqui se nada aconteceu?
Me diz, foi só amor ou medo de ficar sozinho outra vez?
Cadê aquela outra mulher?
Você me parecia tão bem
A chuva já passou por aqui
eu mesma que cuidei de secar
Quem foi que te ensinou a rezar?
Que santo vai brigar por você?
Que povo aprova o que você fez?
Devolve aquela minha tv que eu vou de vez
Não há porque chorar por um amor que já morreu
Deixa pra lá, eu vou, adeus.
Meu coração já se cansou de falsidade!

Até Mais!!!!!!!!!!!!!!!





Carlos Barros, 14 de junho de 2008.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O começo da Beleza em Marilda Santanna


Da série de textos sobre os perfis da MPB, o nome Marilda Santanna chegou com a proximidade baiana das conversas e papos "qualquer coisa no ar", como dediquei a ela na Dissertação Doces e Bárbaros.


Segue o texto abaixo. A propósito, a cantora estará em temporada no Teatro Gamboa nestes próximos finais de semana de julho de 2008, às 17h, sob o pôr do sol da Baía de Todos os Santos.


Marilda Santanna – O começo da beleza

Tudo que você tem não é seu. Só é seu aquilo que você dá. Os versos são de Pop Zen (Manuca Almeida / Alexandre Leão) e expressam o vigor fresco, a verdade e o humor característicos do canto cristalino de Marilda Santanna. A cantora baiana pertence a uma tradição vocal que leva os ouvintes direto a uma matriz importante da MPB, gestada na bossa-nova e na dimensão coloquial da arte de cantar, cujo guru é o idiossincrático João Gilberto.

Marilda é uma artista (cantora e atriz) em que os talentos não se atropelam. Ao contrário, se emprestam mutuamente. Dona de uma verve cênica evidente, seu teatro, entretanto, não rouba a cena de sua música, livrando a cantora do perigo da oscilação inadvertida entre uma arte e outra. Marilda é cantora quando o assunto é cantar e isso é muito importante para a contemplação de seus trabalhos. O teatro – enquanto palco – é a praia em que suas artes se deitam e se apresentam de forma mais confortável. Sua presença em cena, seus gestos e sua mis-em-scène cotidiana revelam a grande atriz que é se expressam em seu canto de maneira bastante equilibrada e sutil. A cantora nos chega com uma sensação de velocidade comparável àquela do desabrochar da flor na natureza: no momento certo.

A música em Marilda é artigo de lapidação constante. Cada nota emitida tem o gosto/gesto suave da pétala se abrindo bem devagar. A agilidade mental (da cantora e da atriz) toma conta da música ao aparecer nas decisões tomadas sobre alcances vocais, milimetricamente pensados. Marilda é de uma emoção trabalhada tão artesanalmente que a sua música pode parecer tão somente racional – posto sua preocupação constante com o processo e o fazer – e isso nos faz pensar mesmo sobre a arte vindo da linhagem da téchne grega. A emoção de suas interpretações se mostra presente nos produtos finais. Depois da elaboração, a fruição. Ouçamos então Dindi (Tom Jobim) e Dora (Dorival Caymmi) para perceber/sentir os fluxos emotivos provocados pelo trabalho da artesã.

Aliás, Tom e Caymmi são referências mais que adequadas para pensar no som de nossa personagem principal. Um é a perfeição arrojada e inovadora na MPB. O outro é a simplicidade temática que se espraia em melodias inesquecíveis. Marilda está bem ali, no meio, na corda bamba (e bem segura), se equilibrando entre Jobim e Dorival. A voz branca (segundo sua própria auto-classificação), sem vibratos a serem corolários das emissões, só pode ser completamente apreciada se nos posicionarmos entre a limpidez estética e a proposta de inquietação produtiva.
A sonoridade de seu disco Marilda Santanna (2002) é sofisticada e pop. Os arranjos são modernos e as melodias cantadas com a precisão matemática da escola da bossa-nova. O teor pop é dado pela acurada atenção de Marilda ao mundo que a rodeia. Esteta e pesquisadora, essa artista, interessada em muitos terrenos da música, se refestela nos salões quase eruditos das notas sem floreios, e como filha – não escrava – do canto de João, dá prosseguimento a um estilo cool muitas vezes esquecido por vozes populares atualmente.

O canto de Marilda Santanna se direciona muito mais para o menos, no sentido da extração do máximo, e isso é o que melhor caracteriza audições como a de Jeito de ser (Saul Barbosa / Orlando Santa Hellena), ou ainda de Pierrot, da lavra de Flávio Venturini . A sereia que ela encarna na peça Yá Olokun (Mônica Millet / Fred Vieira) a situa num privilegiado lugar das cantoras que elevam a arte de cantar ao campo do onírico. Todos saímos (conseguimos sair?) encantados e loucos de vontade de mergulhar nos mares densos da música desta baiana radiante.
E é assim, para não falar demais num terreno onde o minimalismo dá as cartas, que chegamos ao final desta viagem pensando em Adriana Calcanhotto (outra artista que também vai do mínimo para o máximo) e nas origens do belo. Partindo de Marilda, vamos até Adriana – interpretando o texto de Caetano – sobre a beleza podemos perguntar: onde será que isso começa?

Carlos Barros, 05 de abril de 2008.


Muitos beijos a todos!!!!!

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Uma vitória da precisão


Música em Salvador.
Pleonasmo identitário de uma tropicalidade tão nossa quanto estrangeiramente imputada.

Música em Salvador no frio julho tem que ter quentura. Mesmo aquela que não pareça a princípio algo de temperatura elevada, daquela a que estamos acostumados nos nossos fevereiros de fevereiras paixões.

Terça-feira na cidade da Bahia. Casa de espetáculo na orla de Salvador. Jota Velloso e Cavaleiros de Jorge recepcionando ícones. De ontem, de hoje, e quem sabe de amanhã?

Neste encontro, a luz brotou entre olhares e estrondosos ruídos.
Queremos mesmo ouvir algo na noite fria de julho em Salvador?
Alguns queriam e ouviram/viram desvirginar-se à frente, na penumbra de fogs do palco e da inconteste e bela presença de Alex Mesquita, a voz/figura de Virgínia Rodrigues.

Advinda das cenas elevadíssimas das mais técnicas possibilidades vocais, a Virgínia chegou. Os ruídos (incovenientes acompanhantes de órfãos das fevereiras noites baianas) quase a fizeram vacilar.
Engano da suposta força dos ruídos, Virgínia venceu.
A precisão, a emoção, o gingado de corpo e alma desta baiana/universal cantora foram mais eficazes.
Graças a Deus! O álcool, o ti ti ti e a celebrização da simples presença num espaço considerado "in" não foram capazes de não nos fazer ouvir/ver a presença fulgurante e competente do brilho da voz.

Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação.
Em Virgínia, o que há de revelações, reside justamente num mistério: como há de vingar a flor de lótus no meio de um lodo por vezes tão pobre de húmus?
Até Gregório de Mattos pôde ser evocado de forma contundente, para contemplar uma possível celebração da inteligência dos presentes, dos partícipes, dos proponentes da noite. Que cidade é mesmo a da vergonha?
Será que esta vergonha está na dança do ator sobre a dança (acima das desgraças) da Bahia ali ausente, cujo ruído nem de longe se ouvia?
Será que a dança do ator a desavergonhar a Bahia expressaria o que de fato era a desonra do poeta?

Como diria Vinícius (não poeta, mas poetinha), ao dizer da Pátria amada "de fato, não sei".


Noite bela, mas noite múltipla.

A isso tudo, precisamente (ela é virginiana?),
Virgínia venceu.

E que bom que estavam alguns por lá para perceber.
E que bom também que a cidade da Bahia, nos seus meandros, nas suas vielas, avenidas e ruazinhas, ainda pode deixar sair a luz de uma voz/corpo/alma artística tão fortemente sedutora. Sedução que cumpriu a função de dar rasteira na razão (e no irracional de estar num lugar para nada ver, além de si próprios) e fazer platéia ceder, baixar cabeças e render-se.

Êta sedução de baiana porreta.

Me deixe ser Jorge Amado, por que suas vergonhas me estão mais à mostra que as que à mostra, ontem, me deram.

No mais, não vi Daniela Mercury, que, após minha retirada, pousou para trazer uma Bahia em que vergonha, desonra e mentira também se submetem (como assim o fizeram com Virgínia) ao signo da alegria, vibração e força, de uma outra baiana porreta, bárbara e estelar.

Axé, Bahia!!!!!!!!!!!!!!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Jardins, Jasmins, Beleza, Toda moça em todo rapaz

VOCÊ NUNCA ME PROMETEU UM JARDIM DE JASMINS.

Não! Você nunca prometeu um jardim de jasmins!
Fui eu que, pretensiosamente, acreditei poder cultivar,
Em um terreno acidentado, ora arenoso, ora argiloso
O perfume que jamais teria.
Costurava nas estrelas pensamentos de fé
Paisagens e tormentos
Enquanto que, somente estava
Sentado à janela do quarto dos fundos, a chorar.
Viagens de novembro, pão com geléia
Milho de pipoca nunca estoura duas vezes
Pizza de banana [cubana]
Fugas da mente, momentos.
Escrevia para amenizar, sorria para disfarçar
Trair foi uma alternativa [confissão], senão enlouquecia
Não! Você não me prometeu um jardim com jasmins!
Partir. Fora uma longa, e triste tarde.
O tempo parou naquele instante.
Não existiram despedidas apenas, um breve até logo.
[prólogo]
Em um pequeno vaso plantei
Uma muda de jasmim
Não faz parte de meus planos
Fazer um jardim
Apenas pretendo ter o perfume
Que um dia quis ter entorno de mim.

O nome do poeta autor destas letras é Erweuter Volkart, e habita nossa cidade, do São Salvador da Baía de Todos os Santos.

O poema me lembrou de meus jardins cultivados, acabados e por nascerem...

Me lembrou Márcia Short, que em nossas conversas incríveis sempre toca na nacessiadde de cuidar do jardim .

Me lembrou amigos e queridos como Marlon, Davi, Déia, Harlei, Lucas, Mayana, minha família, entre outros que me fazem fitar a felicidade, cada um de sua forma.

Me lembrou do amor...

Um beijo Short!
Um beijo a todos que cuidam e gostan de zelar pelos seus jardins, mesmo os que não haviam sido prometidos, mas brotaram...

Ave Gilberto Gil, que deixou que o amor morresse/nascesse como pão do grão de trigo!

Ave Volkart!


Carlos Barros

24 de junho de 2008.

Incursões Antropológicas


Nas minhas incursões antropológicas, apresentei este texto como base de uma Comunicação no Grupo O Som do Lugar e o Mundo, em 2007.

Na perspectiva de divulgar, mais Drops Literários para vocês.


Beijos e que os ventos de Oyá refresquem as mentes sensíveis deste Brasil!



De Wolverine a Oxóssi –
O pop e os arquétipos de humano


Não é mais novidade o que a cultura pop tem feito a partir de diversos arquétipos universais. São super-heróis, bandidos, mulheres excepcionais, homens desfigurados que passeiam através da música, dos quadrinhos, do cinema, da TV, expressando tanto o horror quanto o fascínio que o imponderável exerce sobre nós.
As bruxas medievais davam calafrios somente em pensar nas poções e nos feitiços por elas realizados. Os alienígenas são desenhados nos filmes a tal ponto, que projetamos neles a crueldade tipicamente humana (até onde se sabe, somente humana), os imputando um desejo de invasão do planeta, como se fossemos uma espécie de Iraque destes seres de outra esfera planetária. Aqui na Terra mesmo, os arquétipos humanos sobressaem nas ficções como resultado da apreensão mítico-religiosa ou da criatividade de escritores, em múltiplos meios de arte, que criam seres em que estão contidos elementos de representações coletivas sobre fenômenos manifestos e capturados pela consciência (ou seria inconsciência?) e fixados como símbolos de tensão e/ou explicação do mundo.
Werewolf é o termo em inglês para designar lobisomem, esta criatura que se constitui num ser meio homem meio lobo (e que não é nem uma coisa nem outra) aterrorizando desde a Idade Média os sonhos de muitas pessoas. O werewolf é uma criatura advinda do universo dos híbridos, cuja hibridização, por si só, já nos leva ao medo, pela falta de pureza, de definição clara do seu pertencimento. O temor que o lobisomem causa é similar aquele que nos dá o “marginal”. No limite entre o aceitável de humanidade e “barbárie” (que me perdoem germânicos, eslavos e outros descendentes dos bárbaros da Antigüidade) o werewolf parece o “marginal”, no sentido de estar entre o humano e o animal, como nós muitas vezes pensamos estes indivíduos que nos deixam apreensivos por causa de sua capacidade de nos surpreender e, mesmo, nos agredir. Se o marginal não é humano? Claro que é. A comparação aqui se dá para perceber a semelhança de sensações. “Quem com porcos se mistura, farelo come”. Esta expressão designa o conselho das famílias para que o indivíduo não se envolva com ninguém que pareça transitar entre limites de civilidade e de não- civilidade. Os híbridos aí (mesmo não sendo lobisomens) alertam para arquétipos de comportamento não aceitáveis socialmente. São representantes de aspectos da cultura que deveriam ser contidos, numa representação generalizada de mundo. O “marginal” (mesmo o apenas usuário de maconha, ou rapaz meio afeminado que adentra casa “de família”) não serve como exemplo razoável de ideal de civilização, tal como o lobisomem; um ser entre perigoso e sexualmente excitante, na sua lasciva busca por carne e sangue.
Wolverine (wolf continua sendo a partícula característica deste nome) é o personagem da Marvel Comics, eternizado na obra X-Men, criação de Stan Lee. O mutante (híbrido também) é aquele que, com um fator de cura ilimitado, pode ser ferido e, mesmo como dor, em pouco tempo volta à integridade, desapontando seus inimigos. Não fosse apenas essa característica, de suas mãos, saem garras de um metal fictício chamado adamantium, que podem fazer estragos quando o ser em questão se sente ameaçado. Wolverine é uma espécie de animal domesticado pela convivência com os X-Men. Sua origem remonta experiências do governo norte-americano com um projeto chamado Arma X. Wolverine era a própria arma. Jogado entre lobos e perigos no frio e em condições adversas, o personagem foi induzido a um estado animalesco para desenvolver suas qualidades inatas de instinto e sede de matar. Ao voltar para a civilização, mantém latentes estas potencialidades, e tal e qual o Werewolf, se transforma em expressão de raiva quando desafiado. Sua oscilação também se dá entre a natureza (instintiva e com regras livres dos padrões humanos) e a cultura, em que assume o perfil de um misantropo avesso ao comportamento social aceitável. Entre Wolverine e o Werewolf, não apenas o prefixo lobo (wolf) é o ponto em comum.
Ogum e Oxóssi são duas divindades do panteão iorubano, cultuados no Brasil, no Candomblé e na Umbanda. São deuses que representam a passagem do homem histórico da animalidade para a humanidade. Ogum é o desbravador, antigo deus da caça e posteriormente o construtor dos impérios do metal. Nos mitos mais correntes, é o sanguinário guerreiro, que corta com sua espada as cabeças daqueles que o desagradam. Uma espécie de cruzado cristão medieval sem o interesse de catequização ou de reconquista de Jerusalém. A sua catequese é a conquista em si. Ogum é o rei da/na guerra. Aquele que abre os caminhos, estabelecendo, ao quebrá-los, os limites. Ogum determina o antes e o depois do Homem a partir de suas armas de metal.
Oxóssi é irmão de Ogum. Aprende com ele as artes da caça e se especializa nesta atividade. Enquanto Ogum constrói estradas, ligando limites, Oxóssi embrenha-se na mata, providenciando alimentos. É a animalidade no seu sentido profundo. Mas Oxóssi (também chamado de Odé, o caçador), é um híbrido, na medida em que se transforma em rei, ao conquistar a região de Ketu, atingindo a supremacia. É animal caçador, na mata e homem soberano, na civilização. Oxóssi é aquele que imita o som dos animais para melhor se aproximar e caçá-los, e ao mesmo tempo, é a personificação da realeza sutil e bela. Enquanto Ogum não se apodera (no sentido de saborear o poder), pois está sempre em busca de novas estradas, Oxóssi está na mata, como animal que também é e está na civilização, como rei que se tornou.
Ogum e Oxóssi são duas animalidades transmorfas em civilização. Werewolf e Wolverine são duas animalidades que se integram e, ao mesmo tempo, se afastam do mundo civilizado. Wolverine tem a faculdade de sentir os cheiros de maneira mais aguçada que nós, humanos. Oxóssi aprende o som e o cheiro dos animais para torná-los presa e posterior alimentação. Ogum e o Werewolf são temidos por seus acessos de ira. Ogum quer conquistar pela guerra. O Werewolf mata por instinto. Oxóssi vive marginalmente à civilização, na mata, e retorna ao mundo da sociedade, trazendo o que o mundo não civilizado fornece – alimento. Tanto Ogum, quanto Wolverine são tipicamente estranhos aos olhos do comportamento sutil. Nenhum dos dois se enquadra na idéia de educação como uma economia de pulsões. Com isto, pode-se afirmar que não se curvam à civilização ocidentalmente erigida ao longo da história. Oxóssi e o Werewolf fogem de um convívio com o humano no momento em que se embrenham nas matas da sua necessidade de solidão. Oxóssi caça solitariamente, e o Werewolf precisa estar só para destilar suas dores inerentes à condição de homem-animal que não consegue fugir ao desejo incontrolável por sangue.
A cultura pop engloba tanto as mitologias religiosas, quanto os elementos coletivos cotidianos. As empresas que fazem maravilhas tecnológicas para desenhar universos mágicos nos quadrinhos e nos filmes, desejam, de fato, que reconheçamos nossa admiração por imagens presentes nos sonhos e no inconsciente. Figuras como Salvador Dali e Pablo Picasso, de certa forma, entenderam o inconsciente e o fantástico na sua arte, que não por acaso, também pode ser enquadrada no rol de imagens utilizadas pelo pop. Para não escapar-me da deixa, e colocar um pouco de mulher nesta história, a recente letra de Harlei Eduardo
[1] – Ororo – é um poema esclarecedor dos efeitos do pop sobre os arquétipos:

Ororo, dona dos raios
Oyá
Mutante transliterada
Ororo
Oyá no espelho, Iaô
Na sala escura um reflexo
Anúncio na tela clara
Na Tempestade dos arquétipos
Iansã surgiu translúcida
Ororo
Oyá tomou sua Iaô.

Ororo é o nome civil de Tempestade, a também personagem dos X-Men, companheira de Wolverine. Sua característica principal é o dom de manejar os elementos do clima, numa transformação de humanidade para natureza, se aproximando do arquétipo do orixá Oyá-Iansã, senhora dos ventos e da cólera expressa nos raios e trovões.
Stan Lee, ao atualizar aspectos do Werewolf na figura de um personagem como Wolverine, está também possibilitando que reconheçamos estes e também Ogum e Oxóssi como arquétipos de híbrido e por que não até certo ponto marginal (de margem, a margear, na borda) nestas personas. Werewolf, Wolverine, Ogum e Oxóssi são todos homens (humanos e masculinos) e animais. Pertencem ao reino do trânsito entre limites. O pop é capaz de colocar eles todos na mesma prateleira comercial, e podemos falar hoje de lobisomem sem um terror que ultrapasse os limites do medo temporário ao assistir uma cena no cinema. O pop possibilita que Wolverine não seja temido, nem quando faz sair suas garras, pois pertence aos limites do mundo dos quadrinhos e do cinema. Ele não sai da tela para descarregar sua raiva em nós. Deste modo, os arquétipos como modelos de compreensão do humano têm na cultura pop uma contribuição fundamental para que nos vejamos como eternos híbridos. Estamos sempre em limites de algum tipo. Estabelecidos aqui, fora dos padrões lá. Mesmo que não cheguemos às raias da animalidade, humanos são testados sempre na sua capacidade de sobrevivência, como Wolverine ou Oxóssi, somente para citar nossos personagens de hoje.


[1] Harlei Eduardo é violonista, cantor e diretor musical do grupo bando de uns.


Até mais!!!!!!!!

Carlos Barros


06 de julho de 2008.

Maria Rita - seus sambas e seus amores


Maria Rita – seus sambas e suas promessas
Chegando ao terceiro disco, a cantora se instala no limite

entre uma lembrança e uma presença


Esquecer Elis.
Ouvir Maria Rita.
Para apreciá-la é preciso despir-se dos mantos desenhados pelo canto de Elis ao longo de tantos anos de audição – mesmo que remota – da voz da pimentinha do sul.
Maria Rita é uma tradução. Uma transmutação de notas doces/acres em um timbre acre/suave de melodiosas construções sonoras para ouvidos apurados. Sua canção vem de tradições tão enraizadas que nos parecem até vulgares no ambiente da sofisticação.
Baixo, bateria e piano adornados por alguma percussão, como que fazendo um corolário para a interpretação quase coloquial de seu canto.
O que poderia parecer, a princípio, absurdo mostra-se um elemento importante de sua música: sempre que Maria soa, ouvem-se alguns ecos de João Gilberto. A respiração e o canto/fala mastigado, como a degustar a melodia, dessa mulher, são como reafirmações da importância da matematização minimalista da Bossa-Nova aliado ao calor das inúmeras de nossas cantoras de emoção afirmativa. O canto de Maria Rita é quase sempre sem dó-de-peito. Sua extensão e alcance são de nota por nota que deságuam em blue notes por vezes freqüentando a obra da cantora.
Seus arroubos interpretativos como que rabanadas de melodias são tão significativos quanto o som quase murmurado de outros momentos.
Maria Rita pode até não reconhecer o baiano de Juazeiro em sua música, mas certamente, ao nos depararmos com o canto faríngeo do início de A Festa (Milton Nascimento) ou em Despedida (Marcelo Camelo), não podemos deixar de ouvir o fraseado de João em sua voz, apenas para citar dois casos notórios.
Se Elis está (lembremos dela aqui) na força dos trejeitos vocais da filha, a voz de Maria Rita nas canções mais frugais é uma voz em que se encontra, entre outras coisas, lampejos de acordes e ritmias do samba contido da escola bossa-novista.
Do primeiro para o terceiro disco é uma longa caminhada para fugir à Elis (ela de novo!).
- A voz é a mesma! – dizem alguns
- Como é parecido! – repetem outros.
- Está imitando – de novo, dizem.
Interessante notar como as semelhanças incomodam, não é?
Mas, definitivamente, Maria Rita não é Elis Regina.
Sua interpretação (a de Maria) traz o timbre (mais grave) próximo da genitora e repete certos efeitos vocais que de fato a lembram. Entretanto, para recorrer ao postulado do irrepetível:
Maria Rita não é Elis.
Vanessa não é Marisa.
Jussara não é Gal.
Mariene não é Clara.
Estrelas brilham próprias. Parecidas, mas próprias.
Maria Rita será sempre a filha, mas já é uma senhora em absoluto na competência musical.
Seu nome já se inscreve com letra maiúscula.
Sua capacidade de transmutar sua voz falada de menina paulista em mulher forte e intensa cantando versos de canções como Não vale a pena (J. e P. Garfunkel) e a recente Mente ao meu coração (F. Malfitano) é algo que não passa despercebido.
É preciso ouvir para dizer!
Hoje, Maria Rita traz seu samba. O texto do disco quase parece querer justificar a incursão. Ela pode?
Ela deve!
Seu samba é tão de nós (como ela, aliás, preconiza) que temos a impressão de que além daquela voz à qual relacionamos Maria, outras tantas estão presentes nos arranjos, nas emissões, nos stacattos e deformações melódicas tão característicos de nosso samba-jazz – filho do encontro do batuque do Brasil com o bebop americano e uma contraparte relevante da própria Bossa Nova.
Maria Rita parece tão à vontade, que percebemos que ela pode cantar samba por uma razão muito mais simples que qualquer teorização: ela é uma cantora. E das grandes!
Sua presença não alcança patamares de singularidade por que evoca outra muito forte.
Sua arte não chega a provocar revoluções, posto não instaurar descontinuidades.
Sua voz não soa nova.
Seu canto não é devastador.
Por tudo que não é, resta o que ela é.
Maria Rita é ar no músculo, como oxigênio no coração – cotidiano e vital.
Maria Rita é sopro através da boca, como o hálito de Deus em Adão.
Maria Rita continua tradições. Ela é uma mulher soltando a voz.
E como não dá mesmo para esquecê-la, Elis Regina é sua mãe.
E que bom que entre seus tantos outros bons frutos, nos legou este precioso:
Maria Rita, a cantora.


Carlos Barros, Outubro de 2007.


Este texto já me rendeu muitos comentários elogiosos (e nem tanto) que atestam a força desta artista para a MPB.

Carlos Barros.

06 de julho de 2008.

Cantar, cantar...


Cantar, cantar...
Gal Costa: Sessenta anos e Uma Voz


Embora haja Bethânia e Elis e Daniela e Maria Rita e tantas outras, hoje é Gal o tema desta prosa. E, em prosa, para traduzir nas letras o que nos é dado a ouvir, somente numa viagem poética para colocar minimamente o que há pra dizer. Dizem tantos de uma certa frieza atual da técnica da cantora. Diva fria, sem movimentos, desatualizada, sem tesão...(?)
Gal apenas paira sobre, e é. Fria ou dada a arroubos, Gal simplesmente o é. Não há artista na música brasileira que possa simplesmente não dar atenção a este fenômeno surgido com os anos pré-tropicalismo e ainda hoje embalando com a sua voz noites e tempos apenas “quando”, como em Vinícius, de muitos habitantes deste planeta música da Terra, por aí afora. Gal Costa parece desafiar as leis mais banais do mercado e da música popular. Desafia, perde muitas vezes, mas acaba fazendo prevalecer o essencial do que é o canto: emissão e interpretação provenientes de timbre e capacidade de dizer com notas o que o texto muitas vezes necessita dizer com metáforas e transgressões lingüísticas. Gal transgride ainda, e curiosamente com uma simplicidade que inquieta, para quem quer sempre o novo.
Gal seduz com o que lhe é mais peculiar e prosaico: os anos lhe deram técnica, mas o que vem mesmo, do fundo, como elemento de catarse para ouvintes é o que, entre a biologia e a fé, lhe foi concedido. Entre as fibras estriadas da laringe, ou o dom de Deus, sua voz, tão simplesmente, oferta-nos com o som de uma pessoa vitoriosa – para tomar emprestado a Wally, o epíteto indicado para sua irmã, Bethânia -, e não se pode negar essa vitória, principalmente quando, por escolhas e impossibilidades próprias do self que compõe a cantora, muitos dados não foram lançados no jogo da presença artística e da mídia, e da sedução de públicos, e etc... O fato, entretanto é que Gal ainda existe.
Se Gal não é mais a mesma, como se ouve por aí, para a voz deste cantor aqui a se desnudar na admiração, Gal não é a mesma, mas o é a própria. Propriedade da canção, do valor musical que supera e se entrega aos efeitos e defeitos do tempo, conservando coisas das mais lindas em amores passados e presentes. Gal, hoje, passou por entre os vapores dos setenta, pelo brilho dos keyboards oitentistas, pela onda revival dos noventa, e chega a sexagenariedade como uma artista ainda... não, uma artista apenas. E apenas não é pouco...
O que uma canção entoada pela sua voz é capaz de traduzir, vindo de uma região muito profunda, que de tanto parece ser superficial, não se explica pelas letras da crítica, nem tampouco pelo amor de fã. As mais recentes estão em novelas, nos discos autorais, mas, sobretudo, na memória auditiva daqueles que já puderam contemplar por pelo menos mais de dez anos o quê de cristal e rasgos da intérprete aqui em louvação. Seja em doçuras como Pra você (Sylvio César), ou em ranhuras acres da voz em Revolta Olodum (José Olissam), Gal concebe o canto como expressão talvez menos racionalizada que outras cantoras brasileiras. Mais som, mais onda, mais ouvido. O concebe, o faz e o eterniza quase sempre, entre acertos, imperfeições e “equívocos”, como é muito sugerido, mas nunca deixando espaço para o ostracismo. Não ouvi-la é o mesmo que negar-se à contemplação das mais belas conseqüências do ensinamento de João Gilberto, aliado à benéfica influência do rock e dos amigos tropicalistas, Caetano, Gil, Rita, Duprat... Gal Costa traz, somente no timbre e na forma de usá-lo, todas as máscaras possíveis para sua performance artística. Não bastassem as teatralidades que a colocaram como musa de uma geração carioca-baiana-pop-internacional, é na sua voz que reside todo o encanto, com toda “pieguice” que essa palavra traz e com toda sua capacidade de palavra-valise; conter o que é dizível do belo.
Ouvir Gal hoje pode parecer obsoleto para uma geração que, como todas as outras gerações, está mais interessada no que lhe sugira o novo. De fato, não há nada menos novo na história da música brasileira que o canto de Gal. É tão não-novo, que chega a confundir-se com alguma tradição perdida (?) ou achada em outras tantas vozes. Marisa Monte que o diga. Vanessa da Matta que assine em baixo. A nossa outra diva baiana maravilhosa – Jussara Silveira – que não me deixe ir à mentira. Todas filhas, netas, pelo menos, comadres do canto de Gal. Ney Matogrosso revelou que a capa de Índia (disco realizado por Gal em 1973) era algo acintoso por esfregar a genitália na cara da ditadura. Gal continua acintosa, por não corresponder mais aos anseios de um público ávido pelas inovações comportamentais da cantora. E, principalmente, por estar ativa e viva, no disco e no palco. Basta ouvir!
Comportamento, cultura e mídia. Tudo além, mas bem aquém, na verdade do que realmente interessa: Gal é a voz. Gal é o timbre. E tudo isso é a força que ela dá à música brasileira. Num campo em que o cantor é ao mesmo tempo o centro das atenções e negligenciado como uma peça menos elaborada (muitos instrumentistas nos chamam de “canários”, numa corruptela de canalhas), a aparição e manutenção do trabalho de Gal é uma possibilidade a mais de se perceber a voz como instrumento. A voz como fio condutor, para onde convergem sonoridades e através da qual a beleza da música pode se unir ao texto, fluída e simbioticamente.
Elis é a maior cantora. Bethânia, a grande atriz da música brasileira. Maria Rita carrega a técnica e a emoção numa medida quase milimétrica. Ivete é promessa de felicidade plena no quesito musicalidade. Marisa traz a canção e o novo na ponta da língua.Vanessa incorpora elementos gestuais que a fazem irresistível. Daniela é a eletricidade a serviço da inteligência artística. Mas, sobretudo, e infinitamente, sobretudo, Gal sobrevoa. É o canto, com todas as significações deste termo. Gal é o som, e como sugeriu a própria Abelha Rainha, um som que deve continuar simplesmente cantando.
Carlos Barros

Março de 2007


Uma versão editada deste texto foi publicada no Jornal A Tarde, 28 de abril de 2007.



Carlos Barros.


07 de julho de 2008.

Para inglês ver



Nós sempre tivemos tudo para inglês ver.





Uma imagem vale mais que mil palavras.





Somente para dizer que o Bando está aí!





Estamos pela aí





We are the world of Carnaval and Sadness, but we are happy!!!!!!!!!!!!








Valeu Déia, Harlei (e o quarto beatle do Bando - Marlon Marcos)



Carlos Barros

07 de julho de 2008.

De Adriana comigo no Domingo


"O Mar quando quebra na praia
é bonito
O Mar"

Os versos de Dorival Caymmi ao quebrarem na praia, certamente chegaram às aguas doces e fundas do canto de Adriana Calcanhotto.

Vi hoje no programa Sem Censura, da TVE Brasil uma entrevista muito interessante desta compositora/cantora brasileira, que, vindo de Porto Alegre, pode nos iluminar muito sobre a poesia musical deste país.

Adriana fala/canta com a graça e inteligência femininas que lhe são tão evidentes quanto misteriosas. Sua aparência calma e plácida traz no fundo, uma inquietação com o existir que seduz e encanta, para usar expressões simples, mas muito sinceras.

Ontem, no Casa da Mãe, abri o show (ao lado de Harlei Eduardo) cantando Caetano e Adriana. Coraçãozinho, do disco de Tieta e Esquadros, canção que ajudou a alavancar a carreira de Calcanhotto.
Dois libelos do cantar, do viver a música e embebido de seus cálices sagrados.

Me encantou ver Adriana falar de Maré (seu disco mais recente).
Me encantou ouvir Adriana cantando Porto Alegre, que Péricles Cavalcanti compôs para presentear-nos com uma homenagem ao mar, através de Ulisses e Calypso. Ah! Grécia Brasileira que é trasnutada na voz de gaúcha.

Me encantou saber que Adriana, tão bem humorada (isso eu já sabia, de ter conversado há alguns anos numa bate-papo fantástico) e falando de seu processo criativo, de como fazer discos (esse produto da Indústria Cultural considerado por muitos tão funesto, mas sem dúvida também quanto magnífico) e de como seus intérpretes (citou Bethânia e Martinália) e parceiros (Wally e sua mágica-louca-presença) estão ao lado de sua criatividade singular.

Me encantou saber da canção que Marisa gravou, do fato - aparentemente banal - de Adriana ser considerada chique por Leda Nagle (jornalismo também pode ser elogioso) e de lembrar que em breve a cantora estará em Salvador, minha velha, suja, mas, sobretudo, minha cidade.

E no mais, me alegra muito saber que, depois de ter cantado ontem Esquadros e Depois de ter você, a TV me deu de presente, num domingo chuvoso, Adriana (que, neste momento toca no sistema de som da Lan House em que escrevo o texto - coincidência ou imanência da deusa-música?), com sua branca beleza e arte tão profundamente mestiça, de misturada, de poesia com música, de Sul com Rio de Janeiro, de inteligência com graça, de alegria com reflexão.

Adriana, somente posso agradecer a tarde de domingo com você.

Até a próxima!


Carlos Barros.


06 de julho de 2008.

O meu amor (e eu?)

O meu amor sozinho.
Preciso dizer que te amo e tanto!Sem muita conversa aqui e agora!
Apenas sentir.
A Montanha e a Chuva dizem tudo por mim.

A Montanha e a Chuva
Orlando Morais

Eu queria tanto lhe dizer
Da minha solidão, da minha solidez
Do tempo que esperei por minha vez
Da núvem que passou e não choveu...
Minhas mãos estão no ar
Como aeroporto pra você aterrissar
Também sou porto, se quiseres ancorar...
Sou ar, sou terra e sou mar...
Eu tenho a mão e você tem a luva
Eu sou a montanha e você é a chuva
Que escorre e some no final da curva
E beija o rio, pra abraçar o mar
É por isso que a montanha tem ciúmes
Quando o vento leva a chuva pra dançar
Muitas vezes tudo acaba em tempestade
Raios gritam sobre a tarde
Tardes dormem ao luar
Anoitece a minha espera
Amanheço a te esperar...


A canção é de Orlando Morais. Marido da Glória.

Obrigado!

Carlos Barros.

21 de junho de 2008.

Irmãos


Deixo, por hora, de escrever aqui as minhas próprias letras para dar espaço às letras da voz do Brasil:

"Os Doces Monges"
Gal Costa

Gil disse uma vez que nós quatro, Gil, Bethania, Caetano e eu somos um. Os Doces Bárbaros. As quatro entidades são independentes, mas juntas, formamos uma entidade única. Somos os quatro fortemente espiritualizados. Temos uma estranha comunhão de espírito. Juntos, formamos uma quinta energia. Com Caetano, principalmente, parece que nos conhecemos há 180 anos. Ou há milênios. Digamos até em vidas passadas, quem sabe? Num programa de televisão, nos anos 80, Caetano disse que nós tínhamos uma identificação musical: como se dois monges tivessem uma iluminação ao mesmo tempo e não precisassem dizer nada um ao outro para serem entendidos. E essa iluminação, esse ponto de luz, de contato, seria João Gilberto, nossa origem musical. Meu primeiro disco, Domingo, foi isso: uma comunhão total, nós dois éramos um só, eu me sentia como sendo a voz dele. Creio que ele também sentia isso. Mergulhei com ele no tropicalismo, fiz Fatal, Índia, shows sempre com forte acentuação desse movimento. Foi quando Caetano e eu resolvemos mudar um pouco a história. Caetano queria que eu mostrasse a minha essência de cantora. E veio o Cantar. Nem o show nem o disco emplacaram. Foi uma mudança muito radical. Neles eu recolhia as minhas feras, as minhas garras, e partia para mostrar um lado mais legitimamente meu. Com o fracasso do Cantar fiquei retraída, entrei em crise, três anos sem fazer nada. Foi quando Roberto Menescal me sugeriu cantar Caymmi. Deu certíssimo. Levamos o show a Buenos Ayres. Lá estava Guilherme Araújo que, durante o show, teve a idéia de realizar o Gal Tropical que viria a dar um rumo definitivo na minha carreira. Ao mesmo tempo eu tinha mais uma das minhas premonições: a certeza de que o show iria ficar um ano em cartaz. Ficou um ano e dois meses no Rio.

Caetano estava de férias na Bahia e veio ao Rio especialmente assistir ao show. Chegou aos prantos ao camarim. Aos soluços. Não conseguia falar uma palavra. Tempos depois me telefona dizendo querer falar comigo. Em casa, os dois sentados na minha cama em posição de lótus, ele me dizia que não havia gostado do show. Que o show era careta, mas que não poderia comentar isso em publico, pois o Tropical era uma unanimidade nacional e não ficava bem para ele ir contra a corrente. Fiquei arrasada. Apesar de toda a crítica ter posto o show nas alturas, de todos os meus amigos, meus colegas, todos me cobrirem de elogios, Caetano ali na minha frente, justo ele que era a opinião mais importante para mim, dizia não ter gostado. Só agora, mais de vinte anos depois, entendo as lágrimas dele no camarim. Acho que naquela hora ele percebeu que nascia uma nova Gal, que ele perdia a sua criatura, que eu poderia partir para sempre sendo eu mesma. Como um pai que via a sua filha sair de casa. Livre e independente. Livres e independentes, mas ainda juntos iluminados. Como dois monges.


Este texto foi escrito por Gal Costa e está registrado no seu site.

Grande abraço junino,


Carlos Barros.


18 de junho de 2008.

Quem é ele.


Quem vem na mata virgem de gente hostil e cruel?

O caçador não sabe o que é o mal.

Morreu sem ter ido de fato através do vale da sombra, sem precisar de Salmo nem de juiz.

Não conheceu o barco de Caronte, nem o chamado da coruja cortando os ares com sua voz aguda de sopraníssimo derradeira.

Quem é ele que sempre vem sem voz, a olhar/cheirar no vento o que quer ter, possuir e simplesmente chegar perto?

Quem ou mesmo o que tem a força recebida pelo dom de esgueirar, imitar e ser o bicho-homem-javali-búfalo, dos pêlos e chifres que fizeram a deusa tremer de paixão e balançar nos seus ventos de ar frio e mente quente?

Ele, que vem do mistério, tornou-se o próprio mistério do abduzido pelas ondas mansas e doces de sua Ophélia negra/dourada a lhe evocar com a sedução eterna.

Sua eterna musa de verões e estações permanentes. Daí saiu o pavão!
E as cores?

Ah! Prazer e beleza.

Dos mares de tantas visões que ao longe ele vislumbrou. Tantas mulheres que o encantaram. Se encantaram com sua bravura sutil.

Quase um esquecido rei que se torna tão comum e assim faz residir sua real natureza.

Rei que é gente.

Sei que ninguém é comum, mas somente sendo tão próximo, pode ser tão nobre.

E que nobreza tem nos lábios, boca, mãos finas e fortes. Ele é alegria.

Traga-me água e folha.

Encanto do dono do verde. Amores entre iguais. Ele e Ele. Azul e verde em diálogo no limite de alguma moral.

Ele que vem.
Na cancela da morada.
Ele nunca deixa de voltar.
Quer vê-lo?
Feche os olhos!

Carlos Barros,
02 de junho de 2008.

São João Batista


Quando ele adentrou na minha casa, era tarde num dia de sol e ele mostrou logo que veio para ficar.

Foi para seu quarto, que é o seu palácio real - não poderia ser menos para sua realeza - e lá está até hoje.

Sua imponência combina com seu silêncio a maior parte do tempo. Sua voz grave, que no céu ressoa, me parece a voz do pai que tenho agora, lá em casa, no seu quarto real.

Este homem que me chegou sem que eu mesmo tivesse pedido me ensinou e ensina todos os dias - em seu silêncio de Rei - que sua vinda anunciava outras.

Chegou na bruma leve das paixões de Alceu, no terceiro que também chegou e ficou por tanto tempo em minha vida, como também anunciou Chico, e que nem daria mais para sair. Aquele é um outro rei, bíblico, daqueles que desafiaram Golias. O meu rei de outra seara.

Este Rei primeiro trouxe rainhas, guerreiros, homens de arco e flecha, mulheres de espada e espelhos. Suas esposas, mãe, pai, irmãs, amores nunca consumados...

Este homem, o rei primeiro, traveste-se, diverte-se com outros nomes - é cubano, africano, mestiço, baiano.
É um Rei de mim (e não é?)
É um homem que, da sua perfeita beleza de homem, é um dos belos de meu viver.

Este homem é meu pai também. E de seu fogo que compartilha com uma mulher que é a da minha vida, faz brotar terremotos que revolvem minha existência, me mostrando que nem todo fim é morte. Ele não a encara. Não é finado.

Este homem, sendo meu pai, avô de meus filhos do espírito (minhas letras, tão dele também), é o céu flamejante quando a água desce em torrentes máximas. Ele e elas a brilharem acima(e namorando) dos mares, nos lugares que também são de mim.

Este homem é a mim e eu sou dele, por que a sua chegada me trouxe a felicidade para o sempre, mesmo que a tristeza nunca tenha - para mim - um fim.

"Meu pai São João Batista é Xangô" e "se um dia me faltar a fé ao meu Senhor",

tem piedade de mim!

Carlos Barros.


24 de junho de 2008.

No dia em que festejavam os anos


Eu era feliz e ninguém estava morto no dia em que eu festejava - com Campos - o dia dos anos dos meus.

E a minha felicidade parece querer ficar por perto quando posso, estando vivo, comemorar o dia em que festejam-se os anos de nascimento daquele meu que parece desafiar a temporalidade, estando à frente e no mesmo tempo que nós.

26 de junho são dois dias depois de João Batista.
Oito dias depois de Bethânia.
Sete dias depois de Chico.

26 de junho é quase bíblico. Do lugar Bethânia, passando pelos pés de São Francisco de Hollanda, chegamos às mãos e às feições de Gilberto.
Gil nos engendra a cada dia com sua música, seu pensamento, sua linha evolutiva, cozida com o linho branco de Oxalá nesta terra rubra e por vezes tão difícil.

Vida e morte para que se zele.
O próprio Gil nos ensina/aponta que a festa é também uma lembrança da chegada que nos coloca à vista da partida. E ele está conosco (graças a Deus) para mostrar que a poesia engrandece e nos coloca num patamar de observação da vida desejando-a como eterna. Deusa mudança que nos conduz e nos faz mergulhar.

Gil é um mestre. Meu pai, meu companheiro de há muito. Minha solidão adolescente sempre foi temperada com suas melodias, seus acordes e suas aulas para anos depois. O músico em mim é ele. O cantor em mim veio dele. O criador em mim é sua mímese.

Gil me é e eu sou de sua persona pública. Seu zen-budismo, tão diferente de minha eletricidade em estufa, é o contraponto do meu sentir-se perdido no mundo. O velho baiano e o menino do Rio.

Gil construiu em Barros a noção de que viver alegre é uma possibilidade. Seus agudos e suas letras sempre me direcionaram para o mistério da vida. Quando eu queria falar com Deus, muita vezes eu ouvia ele, mesmo não tendo esperanças que Deus pudesse ser algo que eu pensava encontrar...

Gil falou comigo. Eu falei com ele e foi a minha proximidade maior da força mística da música brasileira.
Caetano é o Gênio.
Gil é a Criação.
Dois elos de mim com o mundo.
Elos que deixam-me o mundo melhor...

E para não adentrar demais no mistério que Gil proporciona a cada um de seus espectadores, basta dizer que em 26 de junho, uma preta baiana cem por cento pariu o rapaz.

Neste dia, há 66 anos, Gil soou as notas do rouxinol.

Raiou!

As cores de Short


Quando a Banda Mel apareceu, na década de 80, a Bahia e o Brasil puderam conhecer a força e a beleza de uma cantora da mais alta categoria na música brasileira.

Hoje, em tempos de Xangô-João, Márcia Short está nos encarando e mais uma vez encantando com o repertório do Nordeste em disco e show Em Festa no Interior.

A Bahia já está fervendo depois da apresentação recente no Pelô e esperando por mais festa e, com certeza, mais Márcia.

Para aguçar ainda mais a apreciação, segue abaixo um texto que escrevi (como fã que sou) sobre esta artista baiana/universal e luminosa.


Ave Short!



As cores de Short

Certa vez, o músico Tuzé de Abreu me disse que havia dois artistas da música brasileira cujas vozes se abriam em todas as cores do arco-íris: Milton Nascimento e Gal Costa. Certamente, Tuzé se referia à beleza ímpar e complexa dos timbres destes dois cantantes, que lhe fazia perceber sons como estímulos visuais.

Hoje, ao ouvir as diversas gravações dos nossos muitos artistas brasileiros da voz, retomo e compreendo melhor a afirmação de Tuzé. As cores das vozes são fenômenos perceptíveis a ouvidos preparados. Alguns possuem tons mais azulados, suaves e doces. Outros têm a brancura de uma perfeição melódica e de harmonia precisa. Certas vozes refletem e expressam o brilho dourado e reluzente em graves e agudos vivos.

Desta vez, é dos tons avermelhados do som da voz de uma cantora em específico que quero falar. O nome dela é Short. Márcia Short.
Seu trabalho tem uma dimensão artística que começou nas ruas do carnaval elétrico de Salvador, nos anos oitenta e se desdobra até hoje em variados gêneros musicais que passam pelo ijexá suingado de Jota Velloso, pelo funk pop de Lenine e encontram-se com a suavidade de baladas entoadas em timbre forte e de uma personalidade marcante.

A voz desta pessoa traz como marca inconfundível uma ranhura tão sutil quanto bela. Sua tenacidade é acompanhada por uma sensação rascante (como diria Gilberto Gil ao se referir a Maria Bethânia) que curiosamente não nos deixa mergulhados numa tempestade de areia sonora. Ao contrário, quando se pensa que o canto vai ser agressivo, a doçura toma conta (em tons vermelhos) dos ouvintes mais atentos.
As gravações conhecidas de Short nos mostram uma intérprete capaz de convencer tanto no repertório da Axé Music (como nos tempos das bandas Mel e Banda Bah), quanto nos anos posteriores, em que investe em sonoridades menos identificadas com a cena do carnaval, como no disco Iluminada (2004), com canções de Ângela Rô Rô, por exemplo.

A associação da voz de Márcia ao universo afro-brasileiro nos brindou – entre outros momentos – com pérolas do quilate de Iansã (Gilberto Gil / Caetano Veloso), em que se pode perceber uma suavidade em certos momentos da peça, como que Oxum estivesse saudando a Senhora dos Raios, tema da canção. Aliás, rainha na arte de encantar com as cores da voz, Márcia Short eternizou hits como Crença e Fé (Beto Jamaica) de tal forma que outra rainha – da Axé, Daniela Mercury – não pode interpretar esta música sem se remeter aos ensinamentos anteriores de nossa cantora de voz rouca e forte. Antigüidade é posto e temos mesmo que respeitar.

Short traz na voz a propriedade de uma cor marcante, que diferente do arco-íris, não vem com todo o espectro, mas expõe as freqüências mais intensas num registro sonoro difícil de ser esquecido. Mesmo em interpretações de obras como Banho de Cheiro, do repertório de Elba Ramalho, a região vocal comum e a já exaustiva execução da peça não tiram o ineditismo de ouvi-la como se fosse composta especialmente para Short. Sua investida recente pelo universo dos baiões, xotes e xaxados – Em Festa no Interior (2008) – é a prova inconteste da força desta voz na MPB. Márcia consegue imprimir uma característica única em execuções que se referem aos originais sem repetição. Coisa de mestre, no caso, mestra.

Ao falar em cores, nos vem logo a idéia de imagem. A imagem de Short se vincula de imediato á sua voz. Sua cor é vermelha, mas por dentro, certos tons de amarelo invadem sua sonoridade, de tal modo que o brilho dourado matiza a pressão rubra e sanguínea tão evidente em seu registro vocal. Short traz, assim, a confirmação de que voz e cor têm tudo haver, como preconizou Tuzé há alguns anos.

Deste modo, só resta realmente apreciar as cores, como num final de tarde em dia de sol, em que vermelho e amarelo se encontram para no final desaguar no escuro da noite, que continua sendo a cor do mistério. E como os mistérios tendem a continuar a pintar por aí, vamos ouvir a voz – ecos de Oyá – expressionista e firme de Márcia Short; cor da beleza da força da beleza desta nossa nova e eterna baiana.

Carlos Barros
02 de abril de 2008.



Para gostar (ainda mais) de Márcia Short!!!!


Axé!!!


20 de junho de 2008.

Bonita para os olhos do meu bem!


Rio de Janeiro atravessado pela objetividade poética de São Paulo, por vezes dengada numa doçura vocal baiana.

Chico Buarque de Hollanda surgiu entre nós.

E que honra estar entre os que o conhecem, mesmo que de longe, ouvi-lo, vê-lo, mirando as ardósias daquelas janelas de uma alma tão profundamente rica.

São Bodas de Chico!
São dias de chumbo enlevados (e levemente suavizados) pela poesia/melodia/ironia deste autor.

O Brasil lhe saúda!
O Brasil lhe precisa!
A Bahia lhe tem no coração!
Eu te entronizo!

Chico, o de sempre!


A mais bonita
Chico Buarque

"Não solidão, hoje não quero me retocar
Neste salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo
Eu preciso me notar
bonita
pra que os olhos do meu bem
não olhem mais ninguém
quando eu me revelar
na forma mais bonita
pra saber como levar
todos os desejos que ele tem
ao me ver passar
bonita
Hoje eu arrasei
na casa de espelhos
espalho meus rostos
e finjo que finjo que finjo
que não sei"

Todo Chico, e particularmente, nesta letra e música, me permitam:
me sinto absolutamente nele. Não fosse o poder de tradução de todo um povo brasileiro de uma época tão nossa, posso amar Chico porque (não fosse toda a obra) somente aí ele ME traduz!


É 19 de junho!
Evoé, o velho Chico ainda (e por muito tempo) está à vista!


Carlos Barros.

19 de junho de 2008.

Dom


Como disse certa vez Tônia Carrero ao falar sobre as cores(psicografada em canção referencial de Caetano), a predileção é mesmo sobre o que?

Minha arte é a minha predileção completa sobre a vida, sobrte o desejo de mostrar ao mundo que este ânima veio para dizer.

E mesmo que as intempéries impeçam os ventos de soprarem por entre as árvores de pedra da dura vida que nos é dada, a minha voz, brilhante e viva, soa.

E como o som da pessoa já preconizado pelo meu mestre Gil, Carlos Barros é uma voz que soa no corpo, adornado pela força bethânica e pela beleza ga(l)úcha, como a chama o próprio Gilberto.


Eu me coloco por entre a chama bárbara e os ecos baianos de hoje. E assim, minha voz pode sair sem a dependência circular dos agrupamentos secretos dos quais não sou (nem mesmo sei que quero ser) parte.


Simplesmente (e ao mesmo tempo complexamente) eu canto!

Para não deixar de evocá-lo de novo:

Solto está o pássaro proibido!


Deixo vocês com Chico César. Me leio no dom de que fala este contemporâneo:

Dona Do Dom
Chico César


Dona do dom que Deus me deu

Sei que é ele a mim que me possui

E as pedras do que sou dilui

E eleva em nuvens de poeira

Mesmo que às vezes eu não queira

Me faz sempre ser o que sou e fui

Eu quero, quero, quero, quero ser sim

Esse serafim de procissão do interior

Com as asas de isopor

E as sandálias gastas como gestos de um pastor


Presa do dom que Deus me pôs

Sei que é ele a mim que me liberta

E sopra a vida quando as horas mortas

Homens e mulheres vêm sofrer de alegria

Gim, fumaça, dor, microfonia

E ainda me faz ser o que sem ele não seria

Eu quero, quero, quero, é claro que sim

Iluminar o escuro com meu bustiê carmim

Mesmo quando choro

E adivinho que é esse o meu fim


Plena do dom que Deus me deu

Sei que é ele a mim que me ausenta

E quando nada do que eu sou canta

E o silêncio cava grotas tão profundas

Pois mesmo aí na pedra ainda

Ele me faz ser o que em mim nunca se finda

Eu quero, quero, quero, quero ser sim

Essa ave frágil que avoa no sertão

O oco do bambu

Apito do acaso

A flauta da imensidão.

Desejo beijos e ouvidos para todos. Amigos e nem tanto,

Carlos Barros.

02 de junho de 2008.

Dia frio, bom lugar para ouvir o céu trovejar!!!




















É de manhã, vou buscar minha fulô!
A barra do dia "é vem"
O galo cococorou
É de manhã
Vou buscar minha fulô.
Caetano Veloso

E não é que a flor veio?
Nasceu da graça baiana com a força luso-africana de céus rubros e trovejantes.

18 de junho. Bodas de Bethânia.
E Maria continua a brilhar!

E estas letras, escritas há algum tempo por mim, ainda ressaltam esta presença no meu cenário particular.

Vamos a elas:

Maria

Maria, I can see you from here! Caetano, um dia, gritou do alto do norte da Europa.

É fato que todos podemos vê-la e ouvi-la. Assistir Bethânia é sempre inaugural. Vemo-la e pensamos em como a canção popular faz sentido no Brasil. Como faz sentido em nossos corações, em nossas mentes.
Bethânia é torre de grande altura. De lá, de onde nos contempla e para quem faz questão de estar presente, repetidas vezes – e sempre impressionantemente inédita – faz recobrir-nos elementos capazes de recriar sentimentos dos mais variados matizes. Certa feita, uma senhora em Salvador chegou a questionar o que faria com tantas emoções?! Não há resposta para esta questão em se tratando de Bethânia. Ela é criadora. Não é capaz de conter. Não é capaz de não se dar. Não ela.
Com água ou fogo ou mata ou terra; a natureza é transmutada em matéria; o espírito do intenso. Maria. Este é seu primeiro nome. Maria também é mãe. Senhora das abissais e colossais manifestações do sentir. Nada pequeno, nada contido. Pianíssimos de voz que mais parecem absurdas freqüências inaudíveis para ouvidos desacostumados. Rasgos da intenção e da competência para burilar em letras e sons as matrizes de nossa alma.
A aparição de Bethânia foi um acontecimento. Sua permanência, um presente do destino. Seu auge, uma certeza. Contrariando a lei mais certa do humano, Bethânia já não é mais finita. E essa sensação se apresenta na impressão eólica de sua presença. O vento é o eterno mutável do I Ching, tal como Bethânia. De tanto parecer igual, nos soa sempre como nova, como pertencente ao mundo da supra realidade cósmica, a partir de sua música e gestos e fala e todo corpo a aparecer na Hora da Canção. Hora de Bethânia.
Hexagrama de abismos, que é água sobre água na montanha; que não é senão o início da eletricidade, do fogo criativo. Caldeira de ar quente e hálito frio de sua mãe, senhora da vida e da morte.
Maria é Nossa Senhora do Perpétuo socorrei do ânima. Faz chorar e explodir em alegrias, ensinando a existência da realidade como ela comparece: viver é assim!
Lágrima por lágrima, Bethânia presenteia. Águas de Oxum? Cristais de Maria, a Virgem? Chuvas de Oyá?
Cada página biográfica na estrada da música representa um passo de estrela que se permitiu sair (sem cair) do céu e passear entre nós.Bethânia tem nome bíblico. Antigo e Novo Testamentos da Música Brasileira. Dalva e Calcanhotto. De Barro e Antunes. Debaixo d’água tudo é mais colorido. Cores de Bethânia. Cores da Bahia revivescidas na aquarela que a intérprete faz viver através da voz que canta no corpo.
Maria é uma vocação! Maria é promessa que se cumpre!
A força de Bethânia já nasce no grito do carcará.
Pega, mata e nos dá de comer. Comer poesia.
Beleza e Tensão. Amor e Revanche.
E, graças aos céus, o povo brasileiro ainda hoje pode dizer em alto e bom som:
Bethânia, I can see you from here!


Carlos Barros, 31 de agosto de 2007.

No mais,
Feliz Aniversário!

Carlos Barros.
18 de junho de 2008.

Para não dizer que não falei de Chico


Embora não seja necessário comentar o Sr. Chico, irmaná-lo com Pessoa não é um ato sacrílego.

"Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho.
Outros têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também."
Bernardo Soares (Fernando pessoa no Livro do Desassossego)
P.S. Depois da Bíblia, do Corão e da Torá, o único LIVRO irrepreensível e acima de qualquer discussão!

Para ouvir/ler a letra abaixo, ver a foto em anexo!

Gota d'água
Chico Buarque

Já lhe dei meu corpo

Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água...
Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
Pode ser a gota d'água
Pode ser a gota d'água....

A angústia nos faz lembrar o valor inestimável da felicidade.
Felicidade que sinto agora, como contraponto do ápice de uma tristeza que nos é tão comum.
Pois em sendo humanos...


Carlos Barros.


29 de maio de 2008.

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