Cantigas

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Canibalismo solar à meia-noite do Brasil


Há um descompasso geográfico entre a representação e o real... Em três noites cariocas, a Bahia iluminou o Rio de Janeiro com lâmpadas acesas dos quatro cantos do país...

O Sol baiano brilhou à meia-noite nos mares da baía da Guanabara, aos toques do candomblé antropofágico de Daniela Mercury. Durante lançamento da turné mundial de Canibália, seu novo show, a baiana (junto a muitos baianos no palco e na plateia) iluminou.

Daniela é uma luz fulgurante - uma grande multidão já sabe.
Daniela é uma intérprete ardente - basta ouvi-la para perceber.
Daniela é uma personalidade de impacto - em muitos sentidos e direções.


Das informações já sabidas, o que seu novo trabalho nos lembra é que Daniela é uma propositora. O show Canibália é o resultado do amadurecimento estético de uma artista que vem trazendo à tona na Bahia e para o Brasil elementos culturais que - nos limites do popular - demonstram toda a erudição do povo brasileiro, a partir, basicamente, das experiências afro/baianas/globais.


Daniela Mercury é por excelência uma sambista - como já salientou uma das maiores, Beth Carvalho. Seu trabalho tem a marca dos rufares de tambores do samba-reggae e disso ela não abre mão. O construto de seu fazer artístico vem imbuído da necessidade de trabalhar as matrizes negras (brasileiras e aficanas) na música produzida na Bahia.

Com a dança estilizada para os Orixás logo no início, o show começa com o mais tradicional de nossa baianíssima cultura e vai desenhando - intertextualmente - trajetos por sonoridades que vão além do moderno e que terminam por pulsar no peito com a presença da artista, dos bailarinos, dos músicos e da plateia, num uníssono polifônico em torno da cultura brasileira.

A tradição evocada pelos trajes brancos, pelo cenário que estampa Carybé, folhas verdes e estrelas do mar complementa-se com os fios de plástico e luz brilhante que caem do alto e quase ajudam a re-vestir Daniela que se mostra roqueira, pop, trieletrizada saindo das rendas e entrando na fantasia de baiana pop nada, nada zen...
No repertório constam Brown, Ari Barroso, Caymmi, Buarque, Renato Russo e uma plêiade generosa de variados estilos consumidos e "antropofagizados" de forma sistemática e ao mesmo tempo escorreita. - Não queria que ficasse pesado. Pensei em fazer de forma fluida, diz a própria cantora num depoimento que confirmou as minhas impressões, da plateia.


O discurso sobre a negritude e sua importância para o Brasil, as homenagens a Carmem Miranda (incluindo dueto virtual com a portuguesa-baiana-carioca), a excelência de uma banda afiada e multicultural, além do apuro com cenário, figurino e luz que realçam a beleza dos dançarinos fazem de Canibália uma oportunidade significativa para a contemplação (também com o corpo em movimento) das possibilidades criativas de artistas do quilate de Daniela.

Do ponto de vista das provocações, ouvir O que é que a baiana tem e Tico-tico no fubá em formato mais próximo do pop (antes realizado em gravação antológica de Rita Lee) e ver homens dançando vestidos e performatizando Carmem Miranda se aliam ao Kuduro que aporta no show como exemplo da força africana na estética de Daniela e na música brasileira.

Por fim, Canibália é um projeto cuja ressonância maior reside no evidente amadurecimento artístico de La Mercury. Sua postura cênica, envergadura discurssiva, escolha de repertório e certeza no apontar de direções são motivos mais que suficientes para que queiramos vê-la.
Eu disse a Daniela que, para mim, o título do show é apresentado integralmente na sua execução.
Assistir ao show é uma boa oportunidade de me contrariar...
ou de simplesmente ter que concordar.



segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cavaleiro de Jorge



Um disco é um produto.
É o resultado de horas de gravação e de tempos de lapidação pessoal. Digo no momento em que estou finalizando as gravações do meu. Nele, uma das canções é Abiã, de Jota Velloso e Ulisses Castro, e enquanto ele não chega à praça, vamos falar de uma obra já disposta nas bancas da cultura e cujo diálogo é intenso com o cantor Carlos Barros!
O compositor Jota Velloso é um artista cuja fonte criativa se encontra aberta desde gravações memoráveis de muitas cantoras; as mulheres a entoarem o canto deste santamarense.

Agora, Jota traz em seu próprio canto as jóias de seu cancioneiro.
"Camaleão vaidoso no meio das foia parada
não podia ser visto nem quando o vento soprava,
pois carregava a sina da vida camuflada.
beleza que não é vista não serve, não tem valor pra nada!"

Os versos de Camaleão, que está no disco de Jota são representativos do que se ouve neste trabalho.
A beleza das peças e dos arranjos aparece a partir das gravações do compositor, que desfia, em Jota Velloso e os Cavaleiros de Jorge, um conjunto que remonta o tradicional e o contemporâneo em termos de sonoridades no Brasil.
Desde Kirimurê (antes registrada por Bethânia), com evocações vocais indígenas até Eu sou preto (gravada por Daniela Mercury), temos uma musicalidade que aproxima os beats da influência de Aldo Brizzi às temáticas baianas e brasileiras do interior.
A canção Foguete - de rara beleza poética - fica densa e leve ao mesmo tempo, com uma sonoridade de festa do interior regada a doces e bebidas, como que nos quintais juninos. Jota reúne um naipe de músicos de primeira linha pra fazer soar em nossos ouvidos o espoucar de alegria da letra da música sem exageros e na medida certa. O São João é hoje e vem de antes, sem perder sua essência introspectiva.

As participações dos Jorges: Mautner e Vercilo enriquecem o trabalho, com a inventividade do violino (quase rabeca) do primeiro e a voz maviosa e precisa do segundo. Jota e Vercilo falando de uma musa enaltecem a musa maior - música, como se Rio e Bahia se encontrassem desde os "esses" que insurgem até as malemolências vocais que diferem/aproximam.

Verde saudade que me afogou!
E até o fado português dialoga com o forró de um nordeste de cima, borda do recôncavo!

Com Mautner, o caráter sagrado da oração a São Jorge se evidencia num clima quase medieval que toma o cântico, na música e no texto recitado pelo poeta.
Nordeste redivivo com a história do Brasil.

Lá vem Jorge salvar sua gente!

Em Ipod e Medo, o pop toma conta do disco, mostrando uma verve mais urbana do trabalho de Jota; a tecnologia acessível/intrigante da maquininha de ouvir música e os medos de hoje, que nos limitam e impulsionam...

Jota Velloso e Os Cavaleiros de Jorge é pra se ouvir pensando numa Bahia nova e velha; um Bahia de Caymmi e de João Gilberto que dialoga com a Bahia das noites no Rio Vermelho, na Casa da Mãe, no Tom do Sabor, aos sabores de novos nomes que são tão melhores quanto gratos às raízes que nos são chão.

Assim,
Salve Jorge!

domingo, 9 de agosto de 2009

Abrigos


No Rio de Janeiro, em meados de junho deste ano, o poeta, jornalista e amigo Marlon Marcos foi ao cinema assistir um novo lançamento cinematográfico e voltou tecendo muitos elogios
Em Salvador, no início de agosto, Carlos Barros assiste ao memso lançamento e percebe nele a vida como ela se apresenta a partir do viés do amor.
Shelter (curiosamente traduzido no Brasil como "De repente, Califórnia) tem ingredientes de sobra para ser um blockbuster: praia, rapazes bonitos, surf e paixão. O detalhe que o torna mais interessante é a temática gay, abordada como em poucas vezes com ternura, cuidado e... final feliz.
As incursões cinematográficas do ocidente sobre o universo homossexual têm sido muito proveitosas no sentido de abrir cada vez mais a discussão sobre o "ser gay" no século XXI. Apesar de localizarem o mundo não-hetero num patamar de cotidianidade necessário para a convivência multicultural, os desfechos ainda são mais problemáticos do que muitas vezes necessitariam (mesmo respeitando as diegeses dos próprios filmes). Brockeback Mountains e Philadelphia são dois exemplos de excelentes películas que insistem em trágicos finais para histórias que até começam bem.

Será o cinema expurgando as representações coletivas correntes sobre a homossexualidade?
Será falta de pulsão criativa?

"O que será que me dá que me bole por dentro?"

É desta sensação que trata Shelter. Dirigido por Jonah Markowitz e estrelado pelos atores Trevor Wright e Brad Rowe, o longa consegue ser lírico, profundo, belo, rápido e eficaz.
Emociona!
O encaminhamento dramático nos leva a torcer pelo romance entre estes dois surfistas e ao mesmo tempo insere temáticas paralelas como a reação familiar, uma ex-namorada compreensiva e uma criança que convive (olha que bom - sem ser "contaminada" pelo particular "problema" dos protagonistas!) com o casal melhor do que com a própria mãe.
Na construção dos heróis da narrativa, os gays ocupam o espaço e ainda podem sorrir antes dos créditos, o que se mostra como grande trunfo!

Que mais dizer, não é?
Shelter (abrigo, em inglês) é a guarida que precisamos numa tarde de final de semana, ou numa noite de segunda-feira, para nos preparar para o encontro - andando , furtivamente, pelas ruas - com Julietas e Romeus de carne e osso, reescrevendo o final e esquecendo venenos e suicídios afins de histórias mais tradicionais...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

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