Cantigas

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Cantar, cantar...


Cantar, cantar...
Gal Costa: Sessenta anos e Uma Voz


Embora haja Bethânia e Elis e Daniela e Maria Rita e tantas outras, hoje é Gal o tema desta prosa. E, em prosa, para traduzir nas letras o que nos é dado a ouvir, somente numa viagem poética para colocar minimamente o que há pra dizer. Dizem tantos de uma certa frieza atual da técnica da cantora. Diva fria, sem movimentos, desatualizada, sem tesão...(?)
Gal apenas paira sobre, e é. Fria ou dada a arroubos, Gal simplesmente o é. Não há artista na música brasileira que possa simplesmente não dar atenção a este fenômeno surgido com os anos pré-tropicalismo e ainda hoje embalando com a sua voz noites e tempos apenas “quando”, como em Vinícius, de muitos habitantes deste planeta música da Terra, por aí afora. Gal Costa parece desafiar as leis mais banais do mercado e da música popular. Desafia, perde muitas vezes, mas acaba fazendo prevalecer o essencial do que é o canto: emissão e interpretação provenientes de timbre e capacidade de dizer com notas o que o texto muitas vezes necessita dizer com metáforas e transgressões lingüísticas. Gal transgride ainda, e curiosamente com uma simplicidade que inquieta, para quem quer sempre o novo.
Gal seduz com o que lhe é mais peculiar e prosaico: os anos lhe deram técnica, mas o que vem mesmo, do fundo, como elemento de catarse para ouvintes é o que, entre a biologia e a fé, lhe foi concedido. Entre as fibras estriadas da laringe, ou o dom de Deus, sua voz, tão simplesmente, oferta-nos com o som de uma pessoa vitoriosa – para tomar emprestado a Wally, o epíteto indicado para sua irmã, Bethânia -, e não se pode negar essa vitória, principalmente quando, por escolhas e impossibilidades próprias do self que compõe a cantora, muitos dados não foram lançados no jogo da presença artística e da mídia, e da sedução de públicos, e etc... O fato, entretanto é que Gal ainda existe.
Se Gal não é mais a mesma, como se ouve por aí, para a voz deste cantor aqui a se desnudar na admiração, Gal não é a mesma, mas o é a própria. Propriedade da canção, do valor musical que supera e se entrega aos efeitos e defeitos do tempo, conservando coisas das mais lindas em amores passados e presentes. Gal, hoje, passou por entre os vapores dos setenta, pelo brilho dos keyboards oitentistas, pela onda revival dos noventa, e chega a sexagenariedade como uma artista ainda... não, uma artista apenas. E apenas não é pouco...
O que uma canção entoada pela sua voz é capaz de traduzir, vindo de uma região muito profunda, que de tanto parece ser superficial, não se explica pelas letras da crítica, nem tampouco pelo amor de fã. As mais recentes estão em novelas, nos discos autorais, mas, sobretudo, na memória auditiva daqueles que já puderam contemplar por pelo menos mais de dez anos o quê de cristal e rasgos da intérprete aqui em louvação. Seja em doçuras como Pra você (Sylvio César), ou em ranhuras acres da voz em Revolta Olodum (José Olissam), Gal concebe o canto como expressão talvez menos racionalizada que outras cantoras brasileiras. Mais som, mais onda, mais ouvido. O concebe, o faz e o eterniza quase sempre, entre acertos, imperfeições e “equívocos”, como é muito sugerido, mas nunca deixando espaço para o ostracismo. Não ouvi-la é o mesmo que negar-se à contemplação das mais belas conseqüências do ensinamento de João Gilberto, aliado à benéfica influência do rock e dos amigos tropicalistas, Caetano, Gil, Rita, Duprat... Gal Costa traz, somente no timbre e na forma de usá-lo, todas as máscaras possíveis para sua performance artística. Não bastassem as teatralidades que a colocaram como musa de uma geração carioca-baiana-pop-internacional, é na sua voz que reside todo o encanto, com toda “pieguice” que essa palavra traz e com toda sua capacidade de palavra-valise; conter o que é dizível do belo.
Ouvir Gal hoje pode parecer obsoleto para uma geração que, como todas as outras gerações, está mais interessada no que lhe sugira o novo. De fato, não há nada menos novo na história da música brasileira que o canto de Gal. É tão não-novo, que chega a confundir-se com alguma tradição perdida (?) ou achada em outras tantas vozes. Marisa Monte que o diga. Vanessa da Matta que assine em baixo. A nossa outra diva baiana maravilhosa – Jussara Silveira – que não me deixe ir à mentira. Todas filhas, netas, pelo menos, comadres do canto de Gal. Ney Matogrosso revelou que a capa de Índia (disco realizado por Gal em 1973) era algo acintoso por esfregar a genitália na cara da ditadura. Gal continua acintosa, por não corresponder mais aos anseios de um público ávido pelas inovações comportamentais da cantora. E, principalmente, por estar ativa e viva, no disco e no palco. Basta ouvir!
Comportamento, cultura e mídia. Tudo além, mas bem aquém, na verdade do que realmente interessa: Gal é a voz. Gal é o timbre. E tudo isso é a força que ela dá à música brasileira. Num campo em que o cantor é ao mesmo tempo o centro das atenções e negligenciado como uma peça menos elaborada (muitos instrumentistas nos chamam de “canários”, numa corruptela de canalhas), a aparição e manutenção do trabalho de Gal é uma possibilidade a mais de se perceber a voz como instrumento. A voz como fio condutor, para onde convergem sonoridades e através da qual a beleza da música pode se unir ao texto, fluída e simbioticamente.
Elis é a maior cantora. Bethânia, a grande atriz da música brasileira. Maria Rita carrega a técnica e a emoção numa medida quase milimétrica. Ivete é promessa de felicidade plena no quesito musicalidade. Marisa traz a canção e o novo na ponta da língua.Vanessa incorpora elementos gestuais que a fazem irresistível. Daniela é a eletricidade a serviço da inteligência artística. Mas, sobretudo, e infinitamente, sobretudo, Gal sobrevoa. É o canto, com todas as significações deste termo. Gal é o som, e como sugeriu a própria Abelha Rainha, um som que deve continuar simplesmente cantando.
Carlos Barros

Março de 2007


Uma versão editada deste texto foi publicada no Jornal A Tarde, 28 de abril de 2007.



Carlos Barros.


07 de julho de 2008.

Um comentário:

Leandro Avelar disse...

cara queb texto , hein?!
tá de parabens! Texto emocionante e verdadeiro!!!
grande abraçõ
p.s---> sou membro da comunidade da Gal costa no orkut
Leandro de avelar

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