Gal
Costa é uma das maiores referências no Brasil. Hoje, sua existência me é como
um farol que orienta o olhar e meus movimentos. Gal é tudo aquilo que a minha voz
quer.
Recanto é
o nome do seu mais recente disco, lançado no final de 2011 e – desde os
primeiros momentos de anúncio – esperado por fãs e alguns detratores. Não há
nada neste trabalho que possa ser reconhecido como óbvio. Caetano Veloso, que
de tão acostumado a compor para Gal acaba traduzindo-se nela, pensou em timbres
eletrônicos para o canto da parceira de sempre. Gal não pensou exatamente em
nada. Foi lá e cantou. Com graves mais encorpados e denotando a fisiologia de
uma mulher de sessenta e seis anos que guarda a musa que é, Gal interpreta
peças estranhas e belas e fortes e definitivas. “Roço a minha voz no meu
cabelo” é o primeiro verso de uma joia que ironiza a utilização dos programas
afinadores de voz, em Autotune Autoerótico. A cantora (que
ensina violões e pianos a se afinarem cromaticamente às variações de suas cordas
vocais) se deixa brincar com a metalização que vem junto com a modulação
eletrônica do recurso do autotune.
Caetano traz a panela da juventude da moça (que aprendeu a emitir pelo eco do
metal da cozinha, na Bahia) para dialogar com as timbragens contemporâneas,
fazendo com que nos questionemos o quão cantores realmente são certos nomes
célebres a andar pelo mundo...
O
disco inicia-se com Recanto Escuro - poesia genial e assustadora numa narrativa que
passa a limpo a vida de Caetano e Gal. Sexo e Dinheiro também chegam em
outra faixa meditativa, que abre espaço para o funk Miami Maculelê, onde o
clima de euforia e “putaria” da cena
suburbana carioca traz como personagens São Dimas e Robin Hood; aqui alter-egos
possíveis dos pequenos marginais/heróis dos morros do Rio. Ecos da Tropicália?
Sempre! Na faixa O Menino, guitarras e distorções bem características remetem à
Gal do Divino Maravilhoso (Gilberto Gil / Caetano Veloso), do período
em que pernas de fora na música não substituíam a competência do canto, o que a
exuberância física e espiritual da baiana verdadeira sempre teve.
Recanto é
uma re-união entre Caetano e Gal e uma proposta de atualização estética
possível apenas para quem já percorreu os caminhos que fez esta VOZ brasileira.
Agora em março, o show estreou no Rio de Janeiro, trazendo um repertório que
elenca canções (muitas) de Caetano e outras referências marcantes da trajetória
de Gal. Barato Total (Gilberto Gil), Vapor Barato (Wally
Salomão / Jards Macalé) e Deus é o Amor (Jorge Ben Jor) são
canções que não pertencendo à safra de Caetano, estão na carreira de Gal como
estandartes de sua prática de ser uma
grande voz a serviço de projetos arrojados e de energia construtora neste país.
Num momento especial do recente espetáculo, ela mostra por que pode ser
considerada uma das maiores cantoras do mundo. Ao reler Um dia de domingo
(Michael Sullivan /Paulo Massadas), gravada originalmente ao lado de Tim Maia,
Gal mantém a modulação do arranjo primeiro e imita timbragem e maneirismos
vocais do saudoso artista. Aqui, deixa claro que a sua posição
artística/estética privilegiada é para sempre!
Gal
Costa muitas vezes é apontada como uma artista que não impõe sua vontade na
definição de sua carreira. Mero ponto de vista. A força de uma personalidade
pode residir tanto na capacidade de mandar, quanto na sabedoria de flanar por
sobre as águas da história. Gal Costa flanou e interceptou estas águas, ao
colocar o seu instrumento mais que perfeito como seta para ideias, atitudes e
compreensões sócio-existenciais que pertencem ao universo da MPB.
Como
dizem os chineses no conceito de Wu Wei:
a verdadeira sabedoria é a do pássaro, que, podendo voar (com asas que a gente não tem, como diz Caetano na letra de Recanto Escuro) pode também pousar sobre
a folha e observar – cantando – o movimento do rio, que leva a folha, que leva
o pássaro...
Tudo
como manda Caymmi: chamando o vento e levando a vela!
E
entre altos e baixos, Gal sempre levou sua vela muito bem!Originalmente publicado em: www.clicmaissalvador.com.br, em 27 de março de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário