Cantigas

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Cultura para quem?

Uma versão bem particularizada do conceito de cultura vem sendo defendida com unhas e dentes no cenário artístico brasileiro recentemente.

Em se tratando de Bahia e no período do carnaval então, esta cultura nova e antropológica/politicamente correta vem se tornando hegemônica e - por que não - opressora.

A cultura (que nos recupera existencialmente...) a que me refiro virou moda entre aqueles que querem parecer adequados aos novos modos de perceber o mundo e, portanto, contemporâneos (muitas vezes sem a dimensão mais profunda do que isso possa significar). 
Segundo esta lógica, esta cultura precisa vir "do povo", estar conectada com os anseios "populares" e expressar alegria, espontaneidade e o modo de vida "do povo".
Me pelo de medo (no sentido mais baiano possível) desta necessidade de enaltecermos o "povo" enquanto unidade sociológica e com características bem definidas.

Estou apontando minha lente para um discurso que correntemente aflora durante o carnaval e que adorna nossa construção identitária chamada pos muitos de baianidade: segundo esta ideia, o carnaval precisa voltar a ser popular, e esta expressão de popularidade apresenta-se em alguns artistas em específico, que falam a "língua" do povo e para o "povo" fazem seus trabalhos.

Será que há um "povo"?
Será que a arte industrial do carnaval pode ser isenta de interesses para além daqueles "do povo"?
Fico curioso com a defesa manifesta de lobos maus, beijos e extravasamentos, seja no axé ou no pagode.

O Psirico é uma banda muito interessante.
Ivete Sangalo é uma performer de grande expressão.
Cláudia Leitte chegou, não é?

O "povo" do bairro do São Caetano, Canabrava, São Tomé de Paripe, Fazenda Coutos gosta muito de todos eles (pelo menos em representação ampla).

Este "povo", entretanto, não compartilha do modus vivendi deles e nem poderiam. Mas sua arte é associada muitas vezes a um gosto popular que, por si só, sustentaria suas experiências estéticas recheadas de referências-estereótipos de "povo". 
Na TV baiana, sangue embrulhado em jornal (como na canção de Tom Zé, da época tropicalista). 
Na canção pop baiana a possibilidade de colar na corda e de ser o lobo mau (que come, come, come). 
Tudo bom, lindo e divino!
E a possibilidade de o "povo" ser orquestral, pop,lírico e profundo?
E a possibilidade de o "povo" não ser tão "povo" o quanto se pensa?
Não me nego à sexualidade nas canções.
Não me nego à sensualidade das pernas e músculos das(os) vocalistas. Me gusta mutcho, sobremaneira últimas palavras...
Mesmo que eu não vá para ver, eu não me nego a quase nada. 
Só me nego à violência simbólica da retroalimentação dos estereótipos. E aqui não é papo furado!

Gente é pra brilhar, Caetano!
E eu quero o brilho. 
Quando Carlinhos Brown traz o Zárabe e fala de negritude afro-ameríndia é importante que este "povo" compartilhe: da negritude na cara e no nariz dele e também da escolarização informal que é possível através da música popular (e viva Paulo Freire!) 
Isso não matará o lobo mau (com certeza)!

Quando Daniela Mercury coloca pianos, bachianas, orquestras e meninos no trio, é preciso que o "povo" possa escolher fruir e gostar, posto que pianos, bachianas, orquestras e meninos fazem parte do mundo da vida (como diria Habermas).
E o "povo" merece ter tudo isso.
Ou não?

Quando o carnaval passa da esculhambação (tão bem defendida pelo professor Milton Moura) e chega à indústria cultural organizada em torno dos afluxos e multiplicações do capital, é preciso que nas prateleiras desta indústria haja Margareth e Fantasmão; Asa de águia e Timbalada; Pagode e MPB.
O conceito particular de cultura que ora se hegemoniza parece querer dar a César o que é de César; ou seja dar a preto o que é de preto. Dar a pobre o que é de pobre.
E o que é mesmo o que é de preto, meu "povo"?
O que é de preto é o roteiro da novela de Manoel Carlos?
O que é de preto é a sensualidade historicamente liubertadora e aprisionante da preta, luz da noite?
O que é de preto e pobre (que pelo menos parecem ser como podres, não é?) pode ser mais um pouquinho mais do que oferecem lobos maus e professoras de roupas pouco convencionais. 
A questão, aliás aqui posta, se dá no sentido de investigar a convenção:
estamos mesmo enaltecendo o "popular" nos discursos que querem negar ao povo o direito de ter experiências estéticas mais universalistas?

Queremos o diferente no que é o mais do mesmo?
Podemos ter brioches no lugar da "bolacha mata fome"?
Podemos querer caviar no lugar da farofa de feijão de todo dia?
E eu, ao dizer isso estarei sendo o elitista em lugar de todos os que entendem o que o "povo quer"?

O que podemos, então, a partir deste novo conceito antroplógico de cultura?
Podemos comer faisão?

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