Cantigas

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Rasgo da Virgem no corpo de Madalena


Elis era um rasgo.
Ou será que com ela pode mesmo haver passado?
Era?
A conjugação precisa ser no presente. Precisa como a navegação daquele que não sente precisão nas incertezas da vida, mas cujo navegar é imprescindível. Imprescindível tal como o rasgo de luz de Elis.

Elis não foi, nunca poderia ter sido como fato histórico que se esgota na inevitabilidade de ser devorado por Cronos.
Elis não foi, nunca será. Elis é.

E em sendo, ela está, como mito, no inconsciente (quer se acredite em psicologia, ou não) a tilintar e fazer exercitar nossa capacidade da busca de algum entendimento para saer como pôde ter surgido.
De fato, ela não foi.
Elis nunca surgiu. Elis Regina Carvalho Costa habita uma região da existência que não tem tempo nem espaço.

Não falo da mulher de carne e osso (como na canção de Moska e Zélia), nem da cantora, que fisiologicamente transpunha limites entre belo e exagerado, entre pouco e estranho, entre o sim e a negação de qualquer polidez.


Falo do que seu canto representa (querendo inclusive negar o que é para nós a representação - uma imagem que ocupa o lugar da coisa?) como matriz e resultado de Danielas / Ângelas; Leilas / Dalvas; Anas / Dolores; Shorts / Caubys.


O canto de Elis (segundo Rita Lee, o canto do corpo inteiro) nos delata sobre uma certa ânima brasileira que ao mesmo tempo ama e não gosta (pois não goza) deste país.
Vá lá...
Querellas do Brazil na voz de uma gaúcha cujo chimarrão tem gosto de café forte e sem açúcar das esquinas matinais de São Paulo.


Sua afinação e capacidade de atingir regiões físicas e espirituais do cantar nunca foram superadas por nenhum artista brasileiro. Sua angústia interpretativa (mesmo nas canções mais alegres) é sinal de Orfeu em estado de vigília, pela perda de Eurípides.

A Gal é Orfeu sorrindo!

Elis é Orfeu despedaçando-se (gloriosamente)!


Bethânia é Eurípides em Orfeu.
E assim, é de certo modo, um outro lado de tudo que Elis fez. Uma drama.
Outra chama.
Uma raio.
Outra rasgo.


É. Elis também era contraponto. Elis também era possiilidade. Corcovado? Atrás da porta? Basta de clamares inocência?
Quantos Tons, Chicos e Cartolas para esgotá-la?

E o primeiro disco?

Brotolândia? Que broto, que nada! Elis já nasceu madura. Nasceu árvore frondosa da Flora de Gilberto Gil, que o poeta projetou para um futuro distante.
Elis já era a jaqueira. E na copa, a ensiná-la em tempos mitológicos, as aves (que desafiaram Oxóssi) de vozes agudíssimas deram a força e o fio de corte da voz de Elis.

Pois é, esta filha dos tufões também tinha um pacto com o feitiço. As Bodas de prata de Bosco e o Canto de Ossanha do outrora Baden estavam na garganta certa.


Elis cantou na Bahia, embora não fosse baiana em hipótese / aspecto algum.

Elis apaixonou Gilberto Gil.

Elis apaixonou Bôscoli e César.

Elis encantou - sem doce nem flores - um Brasil tão carente de carinho.

Como dar amor sem demonstrar paz?

"O amor é fogo que arde..."
Elis é uma passagem bíblica. E a minha obssessão pelo religioso na música me faz mais uma vez evocar um Livro Sagrado.
Elis estava entre Madalena (por isso fica tão bem com Ivan Lins, não é?) e a Senhora de Aparecida da Romaria,que, em Pirapora, apareceu para Renato Teixeira.

Renato soube que Elis era a Virgem. Ele soube que Elis podia ser o que quisesse.


Caetano certa vez disse que tudo o que Gil não fez em música foi por que não quis.


Eu digo que tudo o que Elis não fez em canto foi por que não pôde. Teríamos condições de apreender o que viria?

Seríamos capazes de poder arcar com as emoções desprogramadas que aflorariam daquele canto milimetricamente pensado para emocionar?

Poderíamos ouvir/sentir/sorrir/chorar/conter/segurar tanto som em forma de mulher?


Tudo o que Elis não fez em canto foi por que Cronos segurou.
Entre mitos, tudo pode. E Cronos aparou a velocidade de Elis...
Saturnamente, como o Opachorô de Oxalufã, como o Xaxará de Omolu e o Ibiri de Nanã, o Tempo adiantou uma passagem. Adiantou uma nova morada para Elis, que, de todo modo, sempre habitou aqui mesmo.


Não ouvimos hoje nada novo por Elis por que não alcançamos seu canto em outra esfera.
Ela continua (como sempre esteve) a cantar para todos nós.
Ela, pisciana, canta com o canto de Aquário.
Milênios à frente do nosso tempo, está ela para nos poupar da incompreensão dos sons que somente Elis ouvia.

Melodias, escalas e notas de passagem que somente Elis podia reproduzir.


Tudo o que Elis não fez para nós está sendo feito agora, por ela mesma, num tempo que - antes de nos devorar - nos faz
não ouvintes de sua voz, nos faz inertes ao emitir de seu corpo etéreo e de sua presença eterna.


Assim, aqui, agora e no tempo do quando, Elis é o canto do Brasil, desde os caiapós até o bêbado/equilibrista das boites nas madrugadas urbanas deste país.


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